Versão radiofónica: aqui
Há dias vinha a chegar ao Alto das Covas, de onde partem as marchas de São João e desce o traçado de Angra-Património Mundial, quando deparei com um desfile de universitários em modo de praxe. Os garotos eram conduzidos como uma manada, pelo que supus tratar-se de gente de Agronomia ou Zootecnia, os mesmos cursos do pólo local que, noutros anos, têm adornado os rapazes de cornaduras de toiros de corrida e pendurado ao peito das raparigas generosos úberes em torno dos quais se espraiam as malhas inconfundíveis de uma Holstein-frísia.
Seja como for, o gado seguia ordeiro, de modo que os bordões brandidos em volta, por entre batinas enxovalhadas, eram para enfeitar.
Ora, ia eu a libertar o meu suspiro habitual, “Que grande estupidez…”, quando me vi acometido de uma inusitada ternura. Avançava a manada, como um comboio de lagartas às quais bastasse o conforto de seguirem atrás da lagarta à frente, e eu engolindo em seco. E, de repente, já não era 2019 mas 1992, e o lugar já não era o Alto das Covas mas os jardins de Belém – e eu também já não era este barbudo de meia idade, urgente de gastar um frasco de desodorizante por semana e de lavar os dentes quatro vezes ao dia, mas um rapaz tímido e arrogante, temeroso de deixar escapar um gesto que denunciasse a minha pequenez e ávido de aprender o que pudesse livrar-me dela.
Nós todos, caminhando rua fora como um rebanho – atados uns aos outros por uma corda que nos trespassava pelas carcelas.
Agora que penso nisso, houve outros dias – outras tropelias –, mas nenhum como esse. Suponho que tenha gostado, não só porque me casei com a rapariga que marchava logo atrás, atada à minha carcela, como porque ainda hoje me chateia não ter ganhado o concurso do Mister Caloiro que as veteranas organizaram em frente aos Jerónimos. Até uma dieta eu havia feito – o que é que tinham as patilhas do Vítor Matos assim de tão especial?
E, de súbito, pergunto-me: em que idade, exactamente, um homem deixa de deplorar a estupidez dos outros para passar a ter saudades de quando era estúpido também? Em que idade começa a correr diariamente para um ginásio, ansioso por suar como um paquiderme como se, com isso, enganasse o tempo? Em que idade passa a conferir a necrologia no jornal – até a criar no seu browser um separador só com os sites das agências funerárias em volta?
O que procurará esse homem, afinal, quando confere os mortos? Uma sucessão de rostos de velho, prova possível de que, para ele, ainda falta muito? Rostos de homens da sua idade, a celebração tristonha de que, apesar de tudo, já vive mais do que eles?
Enfim, talvez a mim me tenha marcado em demasia haver encontrado entre esses rostos, aqui há um ano ou dois, o do Carlinhos, que ainda anteontem era o ponta-de-lança da nossa equipa de juniores. “Morreu do quê?”, perguntei ao Macaco. Não morrera de nada: de acidente nenhum, nem sequer de cancro, apenas de muitos anos de má vida.
“Muitos anos.” Como é que nós chegámos aqui? E como pode isso ter um tão grande peso sobre nós, de repente, que até uma dita praxe académica, já com cadastro até de homicídio, possa inundar-nos de ternura?
Não sei. Sei que há um tempo para se ser estúpido e que hoje tive saudades dele. No tempo em que somos estúpidos, tudo pode ainda acontecer.