Lugar dos Dois Caminhos, 28 de Março
Ontem assisti, estupefacto, a uma discussão insultuosa entre dois intelectuais portugueses a propósito da morte de Manuel Reis. Da morte, não: de alguém ter sugerido que os restos mortais do fundador do Frágil e do Lux Frágil fossem depositados no Panteão Nacional. Também não dessa sugestão, aliás: de um deles ter dito que talvez não se devesse confundir Manuel Reis com Salgueiro Maia. O tom subiu de tal modo, tanto e tão depressa, que se tornou constrangedor.
Não me pronunciei. Houve um tempo em que teria sido o primeiro a chegar-me à frente com uma opinião. Talvez não tenha sido há tanto tempo assim. Hoje quero ter menos opiniões – cada vez menos opiniões. A última coisa que me passaria pela cabeça era pôr-me a perorar sobre a morte de uma pessoa que não conheci, embora em várias circunstâncias me tivesse dado jeito conhecer. Mas vale a pena perguntarmo-nos como chegámos a isto. E, para isso, temos de considerar o género de reacções que aquela morte desencadeou.
É claro: toda a dita discussão aconteceu no Facebook, com um a sugerir mais razoabilidade na entronização dos ícones da nação, outro a chamar-lhe idiota & afins (porque, lá está, era muito amigo de Manuel Reis) e uns quantos basbaques em volta a acicatar os ânimos em busca de intimidade com Manuel Reis ou – mais frequentemente – com algum dos intelectuais em causa.
Podendo assistir, Manuel Reis haveria de ter gostado de ver-se assim disputado, pelo menos durante uns minutos. Eu teria, embora também voltasse a lembrar-me que já em vida ia demasiadas vezes ao Facebook.
A verdade é que, em parte, a morte de Manuel Reis resultou no mesmo que a morte de Zé Pedro. Durante vários dias, e porque por sorte (ou por azar, já não sei) não aconteceu mais nada de relevante em Portugal, pelo menos segundo o critério do debate de Facebook, o país inteiro andou com um manuelreisómetro na mão, a esmurrar o peito a propósito do respectivo grau de amizade com Manuel Reis. Ter conhecido Manuel Reis dava poucos pontos. Não o ter conhecido não pontuava. Ter sido seu amigo dava pontos pra cacete. Mas o triunfo total era ter sido barrado por Manuel Reis à porta do Lux.
Nisso Manuel Reis tinha mais potencial do que Zé Pedro, que não dava pontos pela rejeição. Já ser rejeitado por Manuel Reis provava que tínhamos chegado lá e, mesmo assim, não pertencíamos. Não pertencíamos porque estávamos à margem. Não pertencíamos porque, quando se trata de uma margem como a nossa, estávamos acima de não pertencer. No fundo, não éramos fixes por sermos amigos de Manuel Reis. Éramos tão fixes, tão fixes que éramos mais fixes do que Manuel Reis. Éramos tão fixes que era o Manuel Reis quem não nos conhecia a nós.
Talvez Manuel Reis não tivesse gostado assim tanto de assistir, afinal. Sobretudo se se lembrasse de que o fórum onde se entroniza a correr é o mesmo em que, ao desentronizar uma pessoa, ninguém a remete à sua dimensão: trata-a de atrasada mental, corrupta e pedófila para baixo.
Até ao momento em que acompanhei a divergência, Manuel Reis já era, para os basbaques, um capitalista mimado e, no mínimo, duvidoso. Mas ainda íamos no primeiro dia. Já então eu gostaria de ter dito que talvez não o devêssemos confundir nem com Salgueiro Maia nem com o assassino da Praia do Osso da Baleia, mas como já disse quero ter cada vez menos opiniões.
Imagino o tom em que iria o debate no momento de o leitor ler este texto, principalmente não tendo havido penáltis roubados nos jogos de sábado. Mas, entretanto, a comoção oficial do dia já há-de ser outra.
Nada disto é tão distinto assim de como discutíamos antes do Facebook. Mas a escala – insisto – conta. Dois intelectuais portugueses, respeitadíssimos nas suas actividades profissionais, creio até que posso dizer justamente respeitadíssimos (na verdade, só conheço bem o trabalho de um deles), engalfinharam-se em público, e aliás prolongadamente, a pretexto de ser ou não razoável alguém pedir a introdução de Manuel Reis no Panteão e ser ou não lícito outrem objectar a essa ideia.
E, de facto, eu tinha prometido, no início deste texto, ajudar a compreender como se chega a isto, mas não faço ideia. Fui parte dessa voragem – sou parte dessa voragem – e percorri toda a via sacra até aqui. Se algum dia conseguir determinar-lhes as estações, porém, será com certeza daqui a muito tempo. O que sei é que todas as semanas o debate do Facebook nos obriga a trazer na mão com alguma variante de um manuelreisómetro – um zépedrómetro, um siriómetro, um femininómetro, um antitrumpómetro –, na esperança de que, finalmente, alguém nos reconheça pessoa inteira. E isso é triste, porque no fim descobrimos que a culpa não foi do Facebook: a espécie já era assim antes e nem sequer podia respirar, o que era pior.
Não faço ideia de como chegámos a isto, mas ao menos sei como me vou libertando disto. De quem eu sou mesmo amigo, fora aqueles que me acompanham há décadas (e eu a eles), é dos velhotes da minha freguesia, do Chico que me trata do jardim, da malta com quem faço umas corridinhas, das raparigas do supermercado onde vou de manhã, dos comparsas com quem trabalho os meus livros. Já da espuma dos dias e do sound bite em geral, espero apenas ser cada vez mais espectador. Rir-me um bocado, às vezes. Deplorar bastante, noutros casos – e, frequentemente, desligar e ir tomar um café à venda.