Lugar dos Dois Caminhos, 15 de Setembro
Receber visitas ultramarinas continua a constituir um bom pretexto para levarmos a cabo obras, reparações e aventuras que fomos deixando de lado ao longo do ano, e a vinda dos sogros – sogros meus, pais da Catarina – persiste o melhor de todos. Nisso não diferimos em nada de qualquer outro provinciano, das ilhas ou do continente, pelo que lá andámos a pintar a casa durante um mês, aliás com tal fervor e tensão que, nos últimos dias, as cores já nos pareciam todas iguais, da mesma maneira que, ao entrarmos numa perfumaria e nos pormos a borrifar perfumes para aquelas fitinhas de cartolina, a certa altura já não distinguimos os aromas de Verão e os de Inverno, os desportivos e os clássicos, os de homem e os de mulher.
(Isto sem falar nas habituais sessões de Body Ikea, mas o melhor é nem ir por aí, que já nem os manuais de instruções batem certo como antigamente. Deve ser para se queimar mais calorias.)
Entretanto, concluído o suplício, olhei em volta e vi tudo na mais rigorosa perfeição, menos a sobra da estrada. Não é bem minha, a sobra da estrada, porque toda a gente passa lá e deita lixo para o chão. Mas incomodava-me olhar para declives, soleiras e passeios e ver tanta beata a ressequir ao sol. De maneira que peguei na vassoura e na pá, desci à estrada e pus-me a varrer. E, ao ver-me varrer, não houve um só vizinho, a pé ou de carro, próximo ou distante, que não parasse para um comentário, em poucos casos por ajuste de contas e na maior parte deles para rir mesmo:
– Isto merecia uma fotografia, um escritor a varrer a estrada.
– Ah, pois é, menino, polivalência acima de tudo!
– Assim é que é, que eu também pego na vassourinha…
Houve um tempo em que isto talvez me indignasse, enchendo-me de ímpetos de berrar aos sete ventos que varrer é um trabalho tão digno como qualquer outro, que até os ministros e os cirurgiões deviam varrer, nem que fosse para engrandecimento do carácter, e que, geralmente falando, quanto mais as pessoas se pusessem a anatemizar o trabalho de varrer, mais me apeteceria fazê-lo, desde logo porque me fundei nisso de ir ao contrário da maré e agora já estou um bocado velho para mudar. Mas o facto é que continuo a mudar e que, aliás, quando posso não varrer, também não varro. Simplesmente, abusei tanto do Chico ao longo do mês de pinturas que hoje não tive coragem de não o dispensar para os seus afazeres, e portanto fui varrer eu.
Devagar. Tão meticulosamente quanto possível. E vendo de facto o trabalho avançar – o passeio bem varrido atrás de mim e, dali a pouco, bem varrido também o que se encontrava à frente, dantes imundo.
Na verdade, este arrazoado todo e pus-me a varrer porque gosto de varrer. Porque gosto do trabalho braçal. Tem sobre os demais trabalhos a virtude de efectivamente se ver progredir, e isso descansa-me.
O Garrido costuma contar uma parábola sobre Einstein e o seu jardineiro. Certa vez, e encontrando-se a cortar a relva ao jardim do mestre, o jardineiro apercebeu-se de que, ao canto, o patrão se pusera a podar uma planta.
– Então, senhor professor? A trabalhar?
– Por acaso, não – respondeu-lhe Einstein. – A descansar.
Não se passaram muitas horas até que o patrão deu por finda a jardinagem e se foi deitar de costas no relvado, os olhos fechados e as mãos unidas sob a nuca, cheirando a relva fresca e o silêncio.
– Ah, desta vez não me apanha – apressou-se o jardineiro. – O senhor professor está a descansar.
– Engana-se de novo. Estou a trabalhar.
O que constitui trabalho, já se sabe, é diferente de pessoa para pessoa. Mas, efectivamente, nada me descansa como o trabalho braçal. Tenso, stressante, é lutar dias inteiros com frases que não existem, com personagens cujos contornos se esbatem, com narrativas que perderam o seu destino. Esse é que é o trabalho que nunca acaba – esse é que é, para mim, o trabalho –, até porque a sua concretização jamais passa de um compromisso heurístico e frustrante em que acabamos por aceitar uma modesta forma, nunca concluída mas em todo o caso final, caso contrário nem sequer poderemos passar às frases, às personagens e às narrativas seguintes.
Varrer não tem disto: varre-se e fica varrido. Se não está perfeito, passa-se a vassoura mais uma vez e melhora. E, se mesmo assim não satisfaz totalmente, não pensamos mais nisso, porque, enfim, é um chão, está tão limpo quanto possível e amanhã a chuva leva o resto.
Com o trabalho braçal, uma pessoa chega ao fim do dia e sente que dominou o mundo. Ou que fez alguma coisa, o que, para um tipo que está no ramo dos moinhos imaginários, vai dar ao mesmo. O único trabalho braçal que foge a esta regra é o trabalho de engomar, porque nada fica mesmo bem passado a ferro.
A vantagem do trabalho intelectual sobre tal privilégio é que, de contrário, lutar com frases, personagens e narrativas – “dar voltas às frases”, como dizia E. I. Lonoff, o génio que Roth fez refugiar na ruralidade –, lutar com elas, sim, seria descanso, e não trabalho. E, constituindo tal coisa uma contradição de termos tão grande, o trabalhador braçal não teria como descansar senão não fazendo nada.
Não posso imaginar stress maior do que não fazer nada. Antes escrever, apesar de tudo.
Texto publicado no Diário de Notícias