Versão radiofónica: aqui
O meu primeiro impulso foi chamar-lhe “irmão”, por via de uma afinidade provinciana em que ele talvez até nem tivesse o mesmo zelo. Seria estúpido: sobraria para mim o papel de irmão menos capaz.
A verdade é esta: se hoje me perguntassem qual o melhor podcaster português, eu responderia provavelmente: Ricardo Lopes. E, quanto ao melhor podcast, responderia de caras: o dele, The Dissenter – pelo menos entre os que conheço.
E sou um consumidor diário.
Falo de podcasts mesmo: não de programas de rádio com uma segunda vida nas plataformas. Mas mesmo que falasse nestes também: The Dissenter continuaria um achado.
Todas as semanas, várias vezes por semana, Ricardo Lopes usa-o para nos trazer uma sumidade de algum ramo da ciência e voltar a pensar o lugar do homem no mundo, o lugar do mundo no homem e o que há de cognição em cada um deles (enfim, tudo o que importa). Ele próprio um jovem cientista, embora de formação difícil de determinar, tem um pé na sociologia e outro na genética, um na psicologia e uma boa meia dúzia deles na história.
É uma centopeia, como deve ser um cientista, e o seu The Dissenter vai já a caminho do trigentésimo episódio. Trezentos programas não tarda – longe das modas, das convenções, das agendas político-partidárias, das barricadas ideológicas. E entre os seus entrevistados estão personalidades a que muitos órgãos de comunicação social portugueses não conseguiriam chegar, mesmo que alguma vez escolhessem o exercício da responsabilidade ao do espectáculo.
Falo do psicólogo Jerome Kagan, do filósofo Aaron Rabinowitz, da arqueóloga Lyn Wadley ou até do linguista Noam Chomsky (e isto para citar apenas exemplos recentes). Tudo a partir de Viseu, pela mão de um rapaz da vila de Vouzela, de que muitos de nós talvez não conhecessem mais do que o arroz de carqueja.
Também por isso Ricardo Lopes faz corar de vergonha qualquer jornalista, inclusive o jornalista que eu fui. Mas depois há o que ele pergunta, como pergunta – a humildade e a curiosidade e a liberdade com que pergunta. Há o que ele sabe, sobre a ciência e sobre a vida – os contornos em permanente expansão de uma personalidade como talvez devêssemos ser todos, mas afinal não somos.
São conversas de uma hora, uma hora e meia, duas horas. Ricardo condu-las num inglês de sotaque macarrónico, em que parece ter orgulho (e faz muito bem). E, com isso, mostra-nos uma série de outras coisas ainda.
A primeira é que não existem hoje fronteiras para a troca de conhecimento, ainda que elas nos sirvam tão frequentemente para a defesa da ignorância. A segunda é que há todo um mundo de pensamento e acção, mesmo que subterrâneo ainda, a acontecer fora das grandes cidades – inclusive em Portugal. E a terceira é que tudo isto ocorre à revelia das elites de Lisboa, tantas vezes resumidas – e nomeadamente em podcast – à repetição das fórmulas mais batidas do humor, à vanglória da descoberta do próximo grande cantautor low-fi ou à discussão da série de TV do momento.
Chega a haver equipas: a da HBO, a do Netflix, a da Amazon Prime.
Se Ricardo Lopes não merecia ser já uma figura pop, então eu não sei quem o mereça. Mas não me surpreende que a comunicação social portuguesa ainda não lhe tenha dado atenção. Não há um único intelectual público lusitano a fazer um trabalho remotamente parecido – chega a ser questão de autopreservação.
Sorte a nossa, a dos menos de 800 subscritores da página de Facebook do The Dissenter. Nossa e dos milhares que, de Vilar Formoso para lá, e daí mundo afora, encontram naquele podcast um espaço de reflexão, de noção das proporções e de saber indispensável para resistir à pseudociência que, aos ombros do hedonismo, nos cerca por todos os flancos.