Versão radiofónica: aqui
Chega o Natal, celebram a harmonia uns, deploram o consumismo outros – e eu morro de medo dos telefonemas. O paradoxo é inquietante: consumismo tudo bem, carinho nem pensar. Mas agora são duas semanas de chamadas por obrigação e de mensagens burocráticas, tantas delas copiadas sabe-se lá de que versejador das horas vagas, e a vontade que tenho é de desligar.
E devia desligar, mas o meu sentimento de culpa não deixa.
E, portanto, aí vou eu, como os outros. Segue uma garfada de bacalhau rumo aos lábios – e toca o telefone. Chega a vez de abrir o presente do ser amado – “Espera só um segundo, que é a minha prima!” Está a parafernália do jantar enfim arrumada, tudo pronto para uma boa noite de sono – “Vai andando, amorzinho, que eu tenho só de responder aqui a umas mensagens.”
Ainda são o menos, as mensagens. O pior são mesmo os telefonemas – desde logo porque, no Natal, as relações de afecto definem-se por géneros e cada género tem o seu tempo de antena próprio. Para uma tia com quem só falamos no Natal e nos anos, dez minutos. Para um ex-camarada de tropa que vemos apenas no almoço dos combatentes, doze. Não tarda estamos ambos:
– Pois é…
– É assim a vida…
– É, sim, senhor….
E ainda faltam nove minutos num caso e onze no outro.
E eu não quero ser mete-nojo, realmente. Mas continuo a achar que há outras (e melhores) maneiras de expressarmos o amor que temos uns pelos outros. Por isso suspiro por esse Natal em que o proclamemos todos: “Este Natal não há telefonemas!”
Outro paradoxo: o telemóvel é uma ferramenta essencial para mim: é bloco de notas, é relógio, é quiosque de jornais, é instituto de meteorologia. Mas, caramba, os telemóveis não são para falar: são para dar recados. Dez segundos para o recado, quinze em caso de incêndio ou ataque cardíaco especialmente agudo – e acabou-se.
A mim, até por necessidade me custa falar ao telefone, quanto mais por obrigação. Quando o digo, porém, ninguém acredita. Já usei de apelos públicos, murros no peito, preces contritas: “Pelo amor de Deus, mandem-me um e-mail” – logo eu, que não acredito em Deus. Não há quem não se sinta atingido. A não ser os que dizem logo que também não gostam de falar ao telefone e me prendem nos 40 minutos seguintes. Ou então aqueles que já vêm avisados e suspiram:
– Eu sei não gostas de falar ao telefone, mas sou mau a escrever.
É uma tortura. Ainda por cima, a tecnologia evolui toda – menos a das redes dos telemóveis. Portanto, dois terços do meu dia passo-os pendurado na parabólica do Meo, num equilíbrio periclitante, a ver se não perco o último pauzinho de rede para poder continuar uma conversa há muito esgotada.
Os portugueses gostam tanto de falar ao telefone que mandam um e-mail e telefonam a confirmar se o e-mail chegou:
– Olha, mandei um e-mail a perguntar a que horas é o jantar. A que horas é, já agora?
E isto fora do Natal. No Natal, é um país inteiro a palrar, a palrar, e nem chega a dar-se conta da pessoa em frente. Como os demais, também esse Natal será em breve uma névoa, depois uma vaga memória, até se confundir com qualquer outro.
– Foi no Natal que… Olha, já não sei se foi no Natal em que a minha mãe morreu ou no Natal em que nasceu a minha filha.
Este ano estou com mais medo ainda, porque os votos antecipados de vizinhos, amigos e familiares foram menos do que o habitual. Deve estar tudo a guardar-se para o telefonema da consoada. De maneira que ainda esta manhã vinha a descer a rua, canções de Natal ecoando a toda a volta, e tudo o que ouvia eram apitos de telemóvel.
«Oxalá não sejam para mim», suspirei. Só depois me ocorreu: e se um dia vier um Natal em que, de facto, ninguém me telefone?
Muito bom!!! Feliz Ano!