Lugar dos Dois Caminhos, 13 de Maio
Aos domingos vamos tomar o pequeno-almoço aos Biscoitos. Subimos da Terra Chã à Matela e seguimos Veredas acima, rumo aos Três Cantos e ao Caminho do Cabrito. Paramos na padaria da D. Délia, voltamos ao automóvel, informamos os cães de que chegou a hora de passear e apontamos à Fajã da Serreta, com o carro aos baldões já, os bichos numa excitação tal que eu sei logo que vou ter de passar a tarde a limpar o porta-bagagens outra vez.
Chegados aos Altares, porém, somos forçados a abrandar. A filarmónica percorre as ruas da freguesia, atrás da coroa do Espírito Santo, e agora não nos resta senão guardar reverência.
Passam os saxofones e as trompas de harmonia, as percussões os clarinetes. Passam os mordomos, as mulheres dos mordomos, os filhos e os pais dos mordomos, completando o séquito real. Passam as bandeiras, os estandartes e a demais iconografia trinitária, e só quando finalmente passam também os fiéis de circunstância, zelosos de um momento de intimidade com os mordomos, podemos passar nós.
Então, passamos e eu lembro-me das Geórgicas. Lembro-me sempre das Geórgicas:
Como seriam venturosos os camponeses, se conhecessem/
os seus bens!
Mas depois torno a olhar as mulheres dos mordomos, a nutrição magnífica com que preenchem por completo os seus vestidinhos de cetim cor-de-rosa, e acho que estes agricultores não merecem essa condescendência, porque estão conscientes dos seus bens e quem não está, provavelmente, somos nós, que a cada momento precisamos de recordar-nos o que nos distingue deles.
Oh, como são belas estas camponesas, retesadas por debaixo dos seus folhos cor-de-rosa, caminhando a par da filarmónica naquela indecisão de quem amanhou a terra e, ainda assim, não tem a certeza de ser sua merecedora. Que histórias contam os seus rostos rubicundos, os braços rechonchudos, as pernas barbeadas com uma lâmina velha. Como sofreram cada uma daquelas nódoas negras, estas camponesas – onde foram comprar aqueles sapatinhos de fivela, a quem pertenceram aqueles chapéus de véu antes de lhes pertencerem a elas?
Imagino estas mulheres comprando aqueles sapatinhos na Loja dos Barateiros, ainda a Loja dos Barateiros existia. Lembro a minha avó e a minha mãe e nós próprios, crianças ainda, comprando sapatos na Loja dos Barateiros, por entre os escombros de um terramoto, os caterpillars empreendendo contra a morte e a pobreza – na cidade, pelas freguesias, nas nossas próprias casas.
Lembro o quintal transformado num estaleiro, os trolhas do continente, os cigarros e os palavrões e os copos de aguardente e toda essa solicitude triste em que fomos fundados, todos nós os do meu tempo, no quarto dos fundos de um país antigo e por concretizar.
Levam-me sempre de volta à infância, as festas e as funções do Bodo. Somos sempre nós outra vez, quando passam estas filarmónicas e brilha este sol e estas casas estão pintadas de fresco e estas mulheres tornam a abrir as arcas e a tirar de lá os seus vestidinhos cor-de-rosa. E é aí que começa o Verão.
Lisboa, 17 de Maio
Há pouco tive de deixar o telemóvel e o computador à porta de uma embaixada, em cujo interior me cabia convencer um jovem cônsul a conceder-me um visto de contornos menos comuns.
Senti-me nu. Fui sentar-me na sala grande, onde esperavam outros candidatos, todos olhando o vazio, sem saberem o que fazer às mãos e à mente, e quase meti conversa com eles.
Felizmente, lembrei-me de que estava em Lisboa.
A burocracia resolve-se num ápice, afinal, e de repente caem-me do céu duas horas que não tinha destinado a nada. Saio tão exultante da embaixada que quase me esqueço de levantar o telemóvel e o computador.
Ponho-me a caminhar sem destino. Vou de Sete Rios a Entrecampos, desço ao Saldanha e ao Marquês, continuo para os Restauradores e o Rossio e o Terreiro do Paço. É sempre assim que me reencontro com esta cidade, caminhando a pé, e ao percorrê-la torno a lembrar-me das razões por que me apaixonei por ela, há tantos anos agora.
Decido deixar-me um bocado às compras, a corrigir pequenas faltas. Numa loja fina, um rapaz bonito traz-me a provar um casaco e, quando eu lhe digo:
– Obrigado.
Ele responde-me:
– Não há problema.
Irrito-me um pouco, porque uma tão evidente transposição do no problem americano ainda não tinha ouvido eu. Devolvo o casaco e ponho-me a andar dali.
Mas o resto não é muito melhor. Numa loja de roupa barata, tenho de passar vários minutos a tentar explicar à rapariga o que é uma camisa oxford. E ela:
– Não sei, não sei. Já viu ali nas régular fit? Temos um round no piso de baixo, já viu lá?
E assim sucessivamente, até que quase desisto, temente de que aqueles que anunciam a morte de Lisboa aos pés do turismo de massas não estejam, afinal, tão escassos de razão como isso.
Mas depois compro umas calças e, precisado de subir-lhes as bainhas, pergunto quando poderia a costureira da casa resolver-me o problema. O rapaz diz-me que não prestam esse serviço.
Insisto. Não dá: não têm costureira.
Até que, olhando em volta, ele pega num papelinho e rabisca um número de telefone:
– Não estamos autorizados a fazer isto, mas, se quiser, pode telefonar à minha. Trabalha bem e faz preços em conta. Sei o que digo porque é minha mãe.
E, de repente, eu acho que ainda não está tudo perdido.