Lugar dos Dois Caminhos, 22 de Junho
Há pouco fui ao ficheiro de notas à procura de uma ideia para uma última crónica. Às vezes parece que tudo no nosso olhar é demasiado consciente: uma pessoa sabe que uma coluna está a terminar e alguma coisa se desliga dentro dela. Ou então quer acabar com grandiloquência e não encontra como, o que no fundo vai dar ao mesmo.
Felizmente, tenho o meu ficheiro de notas. Quem se ocupa de uma coluna regular tem de ter um ficheiro de notas. Há semanas em que o tempo é um cavalo, como diziam os antigos: parece que ainda ontem entregámos uma crónica e hoje já temos de entregar outra. Perco a conta às vezes que o meu ficheiro me salvou.
Portanto, pus-me a percorrê-lo. Não encontrava uma ideia boa para acabar, mas havia várias ideias quase boas. E, de repente, eram elas a crónica: aquilo que não cheguei a escrever – as ideias que não se concretizaram dentro de mim, ou talvez não pudessem ter-se concretizado nunca, mesmo que houvesse vida suficiente para isso.
Afinal, não escrevi sobre os cães dos pedintes, os mais felizes de todos, nem sobre o fim do Super Maxi, tragédia sobre as demais infortunada. Não escrevi sobre a voz afectada da senhora que faz o reclame da Nutribalance, nem sobre os talheres que o meu pai roubava na TAP, nem sobre a qualidade do costumer care da FitBit, nem sobre os meus primeiros textos para os jornais, tinha eu quinze anos e o Diário Insular quase sessenta.
Não escrevi sobre a magia do campo de futebol de São Bartolomeu, onde íamos jogar quando éramos crianças, eu e os meus primos, e hoje as ervas trepam as balizas. Não escrevi sobre aquele encontro com o Rui, o intelectual da faculdade, que sabia tudo sobre poesia sueca e hoje é vendedor de fotocopiadoras e feliz. Não escrevi sobre aquela frase genial da Catarina, “O verdadeiro nostálgico não é o que olha para o passado, é o que olha para si mesmo, no futuro, a olhar para o passado”.
Ah, a infelicidade de uma ideia que não chega a acontecer. A agonia de uma história que não encontra o seu destino.
Como aquela do barbeiro dali de baixo de São Mateus, com quem protestei por não fazer marcações, e que me explicou que os seus clientes não precisam de fazer marcações no barbeiro porque, assim como assim, vão cortar o cabelo no horário do serviço e têm tempo para esperar. Como aquela do senhor ao balcão dos CTT que perguntou à Catarina qual era a sua profissão e, depois da meia hora que esta passou a tentar explicar-lho – que traduzia romances, que não tinha recibo de vencimento –, levantou o impresso no ar e deu-se por vencido: “Vamos pôr desempregada.” Como a daquela gaivota do Porto de Pipas, que tem uma asa partida e todos os dias um velho pescador vai alimentar à mão.
Nunca escrevi sobre essa gaivota, afinal. “Castelhana”, diz-me a Ana Lúcia que lhe chamam. Porque é que nunca fui sequer à procura dela?
Tudo o que eu não escrevi. E a vida dos pais da Paula Morais, que a Paula Morais gostava tanto que eu contasse. E aquela senhora que um dia nos disse, rindo: “Só aqui, estamos três viúvas”, e depois murmurou: “Meu rico homem. Trabalhador, asseado, amigo da sua mulher…” E o dia em que conheci um descendente de Antero de Quental, na América, e era um agente funerário, e passámos a noite inteira a trocar piadas, eu e a Irene, os dois muito no gozo: “Funerária Quental: silêncio, escuridão e nada mais”, “Funerária Quental: no ramo da morte desde 1891.”
Não cheguei a escrever sobre o descendente de Antero de Quental. Não cheguei a escrever sobre o intelectual da aldeia, ou o continental da aldeia, ou todos os outros arquétipos que me faltavam. Não cheguei a escrever sobre as empadas da Terceira serem doces. Não cheguei a escrever sobre a Sofia da Ciberangra, a nossa Lisbeth Salander. Não cheguei a escrever sobre a morte do Mário Cabral, de que queria ter reproduzido a Receita Para Agosto, e ainda ontem morreu o Cunha de Oliveira e afinal esta crónica também não é sobre ele.
Não escrevi sobre nada disso e ainda vou na página 7 do ficheiro, que tem 56 páginas de notas em corpo 8 e entrelinha simples. Não escrevi sobre a minha relação com as touradas, cada vez pior; nem sobre a receita das filhoses de forno, pelo menos como as faz a Lídia; nem sobre o Ti António Soares e a Tia Maria Augusta, que tinham um filho deficiente chamado Valter; nem sobre as coisas que eu acho mal aqui na ilha, e que afinal não tive indignação suficiente para contestar – a deficiente formação na hotelaria, a falta de ar condicionado na biblioteca nova, os multibancos nunca terem dinheiro, o café do aeroporto estar tantas vezes fechado.
A Sofia da Charneca teria gostado dessa crónica. A Sofia da Charneca costuma dizer que eu perdi a verve quando me tornei um homem feliz e que, às vezes, até lhe faço lembrar o MEC, o que para ela é um insulto.
Talvez a conforte saber que esta coluna chega hoje ao fim. Devo avisá-la, porém, de que volto em Janeiro. Trago outras matérias e agendas, mas acabarei por escrever sobre isto tudo que não escrevi agora. Alguma vez estas crónicas pretenderam ser tanto sobre o campo como foram sobre a vida?
Por hoje vou comer um dos dois Super Maxi que ainda ali tenho no congelador à minha espera. Merecem ser celebrados, estes quatro anos. O último Super Maxi fica para o dia em que eu for pai.