Lugar dos Dois Caminhos, 11 de Dezembro
O meu amigo A. é o mais extraordinário bibliófilo que conheço. Quem o ouça falar dos milhares de livros que possui, conservados numa segunda casa que tem algures aí para cima, chega a imaginar um alvoroço impenetrável. Mas ele sabe onde arquivou cada um. Ainda há uns meses, precisado de reler o Raul Brandão e incapaz de encontrar o meu próprio exemplar, lhe mandei um SOS. No dia a seguir deixou-me na venda duas edições diferentes – de presente, mandou informar.
O meu amigo A. seria talvez um bibliófilo convencional se não fosse também ladrão. Ou por outra: se não tivesse sido ladrão – um dos melhores ladrões que esta terra conheceu. Durante décadas, roubou nos sítios mais improváveis, aos proprietários mais improváveis, nas circunstâncias mais improváveis. Entretanto, reformou-se. Tornou-se encadernador, como um bom bibliófilo. Mas nem por isso se esqueceu da sua arte original.
O Tribunal já lhe pediu ajuda para abrir cofres e fechaduras. Os polícias gostam de ouvir a sua opinião. Ele suspira: “Esses rapazes novos não sabem roubar… Eu era um ladrão limpo!”
Numa terra como esta, tão pobre como escassa de crime violento, o furto é uma das ameaças a que se deve dar atenção. Quase todas as semanas ouço histórias de furtos, recentes ou antigos, e em muitas delas começaram, nos últimos anos, a misturar-se elementos da crueldade mais gratuita. Um tipo assalta casas quando os donos estão de férias e, agora, parte os copos e os pratos pelo chão. Outro rouba gasóleo a jipes e carrinhas e passou a deixar no tanque lixívia ou outra trafulhice qualquer – só pelo prazer de destruir o motor.
O meu amigo A. não fazia nada disso. Tinha uma ética. O seu deleite era entrar e sair sem que se soubesse que entrara e saíra. Talvez a pessoa que um dia fosse à procura de determinado objecto batesse com a mão na testa: “Ah, o sacana do A., que já cá me veio outra vez a casa!” Conta-se que chegou a devolver os produtos de vários furtos, por peso na consciência ou até por afecto. E quem queira duvidar disso, pois aí estão os seus sinais exteriores: o A. nunca enriqueceu.
Ainda há umas semanas, numa festa de aniversário, estive numa roda a ouvir histórias de ladrões. “Ah, mas o grande ladrão, o maior senhor de todos, era o A….”, suspirou alguém – e, acto contínuo, contou-me mais uma série de peripécias do A.
Os meus amigos sabem que gosto de coleccionar essas coisas, porque tudo o que conheço do passado do meu amigo A. é de ouvir dizer. Nunca lhe fiz perguntas. E não por receio de que um dia, sentado do outro lado da mesa do restaurante, ele levasse de súbito a mão ao seu próprio bolso e, com um sorriso malandro, extraísse de lá a minha carteira. Nunca lhe fiz perguntas porque tenho medo de que a realidade não seja tão boa como a lenda.
Eu gosto do meu amigo A. como ele é na lenda: o ladrão limpo que, de tão apaixonadamente bibliófilo, viveu dentro de um livro até se tornar encadernador deles. Quando voltar a publicar, e como já se tornou tradição, hei-de ter um exemplar assinado para ele juntar aos milhares de volumes que guarda numa segunda casa que tem algures aí para cima. Entretanto, vou namorando a sua história – até que me apareça nas páginas de um romance, que é a única justiça que algum dia poderei fazer-lhe.
Lugar dos Dois Caminhos, 13 de Dezembro
Hoje acordei com um telefonema da Catarina. Ela tinha ido trabalhar para a biblioteca, como faz quando está a traduzir um livro exigente, e, visto eu ter ficado ao computador até de madrugada, saiu sem me acordar. Entretanto, chegada a hora a que o meu despertador toca, ligou-me. Eu pestanejei, estremunhado. E ela:
– Querido, que emocionante!
Ao sair para apanhar a urbana, muito cedo ainda, tinha-se deparado com o Rúben, o Sr. Francisco e aquele a que ambos chamam apenas Primo, e que lhes serve de ajudante. Distribuíam-se pelos cerrados aqui ao lado, roçando fonas-de-porca e silvados, e já haviam desimpedido por completo aquela tira de terreno entre o antigo pomar e o cerrado a que damos o nome de Biscoitos, e que fica mesmo na linha do olhar de quem atravessa o jardim.
– Está a ficar lindo – insistiu ela. – Já nem me lembrava de que era assim!
Quanto a mim, todo o dia fui à janela. Vi-os brandir foices e gadanhas. Vi-os conduzir alfaias e parar para discutir a melhor maneira de atacar novo cabeço. Visitei-os para cumprimentar e depois visitei-os sem pretexto – apenas para poder ouvir os sons dos seus monossílabos e sentir o odor a mato recém-cortado. Agora mesmo, que estou aqui a escrever, passada a meia-noite, imagino que estão ali ao fundo, por debaixo do castanheiro grande, investindo contra as infestantes e os elementos, impondo a sua vontade a uma natureza tão boa como insidiosa, e com a qual sabem que, inevitavelmente, acabarão por perder.
Foi a minha melhor jornada em várias semanas, esta em que estive rodeado dos homens de trabalho. Só paro quando não aguentar mais, ou então quando se desfizer a magia. Como é estimulante e apaziguador – que comovente é, como faz companhia e é solidário e nos enternece e dispõe, o som longínquo dos homens de trabalho que investem contra a perfídia e a morte.
Publicado no Diário de Notícias