Versão radiofónica: aqui
Há dias dei por mim em conversa com um amigo sobre os tempos em que os da nossa geração se dividiam entre os que se riam com Seinfeld e os que se riam com Friends. Ele gostou logo: tem uma predilecção por dicotomias e trincheiras.
Mas aquilo em que eu estava mesmo a pensar era no avião que havia acabado de aterrar em Barajas, com uma roda a menos e um motor explodido em voo.
Por acaso até andava a ver Seinfeld, na Amazon Prime. Não a tinha a visto nos anos 90, salvo um episódio ou outro, como aliás acontecera depois com Friends. Entretanto, tinha-a visto a esta também, numa reposição – agora, podia comparar.
Seinfeld era melhor no humor físico, via ‘Kramer’. De resto, era mais cínica, mais politicamente incorrecta e mais conservadora. E era também mais desprovida de intimidade, mesmo avessa a ela, que era aquilo em que (fora as raparigas) Friends era mais forte.
No mais, eram séries parecidas. Faziam-me rir e far-me-iam rir ainda mais se não se reduzissem sempre às mesmas fórmulas. Mas, como aquilo em que eu pensava era no avião de Barajas, apeteceu-me mais gostar de Friends, que falava do lado bom da vida e, além disso, permitia ao meu amigo a dicotomia desejada.
A verdade é que esta semana me apetece celebrar o que o mundo tem de bom.
É claro, também temos o populismo e os populistas. Também temos a corrupção e os corruptos. Também há o capitalismo selvagem e aqueles que aproveitaram o aniversário da libertação de Auschwitz para reafirmar as extremas-direitas.
E, sim, não se passaram trinta anos sobre a última guerra devastadora na Europa. Não se passaram vinte e cinco sobre o milhão de mortos à catanada nos Grandes Lagos. Não se passaram vinte sobre aqueles dois aviões que atingiram Nova Iorque, desencadeando conflitos e atentados e escaramuças.
Além do que todos os dias exercemos o ódio uns sobre os outros – até a pretexto (imagine-se) de futebol.
Mas há tanta coisa a celebrar… Basta-me olhar por esta janela. Os meus cães brincam na relva, envelhecendo saudáveis. Os hibiscos e as mimosas começam a declinar, mas a magnólia já aí vem, os aloés e os cravos aéreos estão a florir pela primeira vez – até as estacas de roseira que a Mercês me deu pegaram todas.
Da minha dock ecoa Prokofiev. O João arranjou-me o livro do Miguéis que eu procurava. Ainda há dias revi Michelle Pfeiffer a fazer a condessa Olenska. E, para mais, os aviões já aterram sem uma roda. E amaram no Hudson. E voam 40 milhas sem combustível, como aquele canadiano que Robert Piché aterrou aqui na Terceira há uns anos.
Ah, a ciência.
Ainda ontem estava a ouvir um podcast da BBC em que Nick Hornby e Harriett Gilbert recebiam um físico cujo nome não fixei para discutir livros das respectivas preferências. E dizia este: “Não consigo escolher um com menos de cem anos. Tivemos o Iluminismo, com Deus no centro e toda aquela beleza; tivemos o Romantismo, com a natureza no centro e toda aquela vertigem; agora, chegamos ao Antropocentrismo total, e tudo é infelicidade. Deixem-me escolher um livro antigo, de quando se falava das coisas boas da vida.”
Sensibilizou-me, ouvi-lo de um cientista. Até porque tinha acabado de ler sobre o plano da OMS para curar sete milhões suplementares de cancros até 2030. E sobre como alguns cientistas aprenderam a destrancar uma espécie de cofres em que se aloja o HIV, cada vez mais uma doença crónica. E sobre o ritmo a que o coronavírus cresce agora, o que me começava a permitir acreditar num balanço final de vinte ou trinta mil mortos – bem menos do que os 500 mil que o H1N1 provocou há dez anos e sem comparação com os 500 milhões que levou há cem.
Não sei: talvez seja apenas a minha esperança a falar. Mas a ciência – eis uma coisa a celebrar. E a natureza. E a beleza. Apesar disso, não vejo ninguém a sorrir com nada. Até o humor tem de ser cínico e triste. Será que temos de esperar até Maio, para o Benfica ganhar o campeonato outra vez?