Lugar dos Dois Caminhos, 4 de Maio
E às vezes há o iluminado. Até aqui, nesta terra distante, protegida durante tanto tempo pelos Invernos impossíveis e pela escassez da oferta, começo a encontrar a figura do iluminado. Na província continental, então, nem se fala.
Está cheio de iluminados chegados da cidade, o campo. Muitas vezes são agricultores biológicos ou fundadores de unidades de turismo rural, como nos primeiros arquétipos que vêm à cabeça do leitor, mas também podem ser apenas profissionais liberais aposentados ou até – já aconteceu – investigadores académicos.
Seja como for: quando encontro um iluminado, a primeira coisa que faço é perguntar-me se já me deixei resvalar para o mesmo lugar que ele. Confiro os comportamentos de um e de outro e recapitulo mentalmente a lista de cuidados a ter. Tenho achado que continuo mais ou menos a salvo, e espero que não seja apenas o meu desejo a falar. Está para nascer o primeiro homem que não vá apurando, com o decorrer dos anos, a capacidade de mentir a si mesmo.
O iluminado nunca foi adulto no campo, mas pode ter vivido nele durante a juventude. A maior parte das vezes, é apenas filho ou neto de camponeses e tudo na sua pessoa é urbano. É a primeira coisa a ter em conta sobre o iluminado: ele é realmente urbano, apenas por momentos desejou ser outra coisa que não urbano e, passado algum tempo longe da cidade, envidará todos os esforços para deixar claro que é urbano, o que, no seu conceito – o conceito que nunca abandonou, a verdade é essa –, está acima de ser rural.
E, então, aí vai ele. O que de início lhe parecia uma descoberta já se tornara um hábito e agora começa a parecer até um enfado. As rotinas, os cheiros, os lugares, as pessoas: no campo é tudo encantador, absolutamente encantador, mas bem vistas as coisas podia ser de outra maneira. Ele não o admite, porque haveria de parecer arrogante – e o iluminado não é arrogante, evidentemente –, mas que as pessoas do campo continuem a viver como antes de ele chegar, cheio de ensinamentos para elas, parece-lhe de repente um pouquinho absurdo.
O iluminado quer modernizar o campo e tem dificuldade em perceber que as pessoas do campo não queiram modernizar o campo com ele. Hão-de pensar que ele o quer mecanizar, quando na realidade é todo o contrário. Em muitas coisas, o iluminado até quer que o campo recupere alguns métodos mais antigos, que eles, sim, eram modernos e se mantêm muito mais modernos do que essa bandalheira kitsch em que o campo, entretanto, se quer transformar.
No fundo, é isto: o iluminado não é apenas o último garante dos valores do campo, dos verdadeiros valores do campo, mas tem de garanti-los apesar daqueles que sempre viveram no campo.
O iluminado, mesmo sendo urbano, é muito mais do campo do que os do campo, e agora manda a responsabilidade que os vá guiando com sentido de missão, que isto a vida não são só telenovelas, ailerons do tuning e jogos Santa Casa.
É por isso que, quando usa expressões como – sei lá – “costume popular”, já de si algo perturbadoras, o iluminado as usa apenas no biquinho da boca, como que com os dedos unidos em pinça, num esgar de nojo que lhe empresta uma sibilação afectada à pronúncia, “populáss”. É de tal ordem a condescendência do iluminado sobre os homens e os hábitos e os apreços do campo que só tem paralelo na admiração que os adoradores do campo têm pelos seus homens, hábitos e apreços – e às vezes acontece mesmo os iluminados e os adoradores coincidirem na pessoa, embora em momentos diferentes da vida.
O iluminado tem a mania que é bom, e é isso que me irrita. O iluminado põe-me a dizer que alguém “tem a mania”, como dizem os do campo, e é isso – definitivamente – que me irrita.
Nunca vi ninguém usar tantas vezes expressões como “ponto final parágrafo”, tão cheio de certezas absolutas, como o iluminado. Por outro lado, pergunto-me se se trata mesmo de certezas absolutas ou, mais prosaicamente, de uma comovente insegurança. O facto é que nunca encontrei uma tão obsessiva procura da virtude, um tão cabal moralismo, como encontro no inseguro urgente de se validar e, afinal, desprovido de qualquer espécie de paz.
Eu nunca procurei a virtude no campo, acho. Ou talvez tenha procurado. Mas a minha experiência já durou tempo o suficiente para chegar a aprender que a virtude deve ser a última das minhas preocupações. Bem vistas as coisas, não há qualquer virtude em viver onde vivo e como vivo: há até algum egoísmo. Ganho menos dinheiro, mas gasto menos dinheiro. Não tenho cinema, mas tenho um pomar. As experiências de vida são menos diversas, mas de resto estou-me nas tintas.
Ao fim de seis anos, sei isto: o campo, como a cidade, tem gente boa e gente má, invejas e solidariedades, idiotas chapados e génios absolutos, homicidas em potência, bons samaritanos e super-heróis. As pessoas são em regra mais interessantes do que parece, mas na cidade, olhando-as bem, é a mesma coisa.
O campo é igual à cidade, tirando que fica mais longe, e se calhar isso é o mais importante de tudo: estar longe. Estar um pouco mais livre, inclusive da necessidade da virtude – eis o privilégio que o iluminado ainda não percebeu.