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Em concreto nem sempre será assim, mas em abstracto os professores trabalham mais do que a média, andam com a casa às costas até aos quarenta e não ganham metade do que nós queremos acreditar que ganham. Mais: foram espoliados de direitos adquiridos, são mantidos pelo Estado em situações de precaridade não autorizadas a um privado e, na recta final de carreira, não chegarão a ser aliviados das sobrecargas da profissão, para que já nem as suas mentes nem os seus corpos sexagenários estarão preparados.
Tudo isto é tão verdade que até quando eu vivia na bolha do Bairro Alto o sabia. Entretanto, porém, vim parar aos arredores de uma cidade que, sem os seus professores, talvez já nem fosse bem uma cidade. Afinal, chegava o Inverno e ninguém saía de casa, afundando-se no sofá a ver os programas de talentos – a não ser os professores. E depois voltava o Verão e ninguém se importava com a cultura, mergulhando nas festinhas e nas festarolas que o poder gosta de confundir com ela – a não ser os professores.
Os professores faziam teatro, pintavam quadros, tiravam fotografias. Os professores compunham as plateias, liam os livros, divulgavam os livros. Os professores passavam a noite a cozinhar bolinhos para quem fosse ao teatro, de modo a que não deixasse de haver teatro; e passavam os fins-de-semana a ajudar a colega fotógrafa a organizar as fotografias, para que não deixasse de haver exposições; e todos os dias havia algures um professor a angariar fundos para alguma causa, ou a comer com amigos num restaurantezinho de outro modo vazio, ou a recolher animais abandonados pelas estradas de bagacina do interior da ilha.
Portanto, detive-me neles. Memorizei os seus nomes. Fiz-me seu amigo.
A Patrícia. O Paulo. A Bárbara. A Margarida e a Graça, a Ilídia e a Paula. A Carla, o Carlos, a outra Paula, a Catarina. A outra Patrícia, o outro Paulo e o António. E o outro António, e a Natal, e a Teresa, e a Mariana, e a Dulce, e o João – e tantos mais (tantos mais!) que, de repente, se tinham tornado gente, de carne e osso, com as suas rotinas e esperanças, as suas frustrações e curiosidades.
Que tinham deixado de ser abstractos.
E que também precisavam às vezes de contar os trocos, como qualquer de nós, para irem ao cinema. E que ainda mal acabáramos de jantar e já voltavam para casa, porque tinham testes para corrigir. E que tantas vezes não arranjavam marido nem mulher, porque haviam andado duas décadas a mudar de cidade, deixando passar o tempo em que se casa por paixão.
E que não tinham filhos.
E que tinham gatos.
E que, apesar disso, cuidavam dos nossos filhos magoados e intratáveis: dos filhos que enviávamos para a escola sem lanche, dos filhos que enviávamos para a escola mal agasalhados. E que lhes arranjavam um lanche, e que lhes arranjavam um casaquinho: tudo para que pudéssemos continuar a usar os nossos filhos como um brinquedo, ou como um mecanismo de reclamação de benefícios, ou até como um vazadouro do nosso sentimento de culpa – enfim, isso que cada vez mais divide as crianças entre os bullies e os meninos-da-mamã, e a que até podem vir a ser eles, professores, a servir de saco de pancada, perante a indiferença de um sistema que nos incentiva a chamar-lhes incompetentes, lamuriosos, desonestos e o mais que nunca chamaríamos a um médico (oh, o senhor doutor…), e menos ainda à funcionária das Finanças.
Eu enlouquecia. Apenas isso: enlouquecia. E portanto, não sei em abstracto, mas, em concreto, quando hoje ouço falar de um professor que enlouqueceu, prefiro perguntar-me primeiro se não foi esse o que enlouqueceu em meu lugar.
Que lucidez, Joel! Que conhecimento dos quiproquós da vida dos Professores. Que bela homenagem a toda a classe, que se dedica inteiramente à profissão, chegando a não ter tempo para si mesmos. Continuo a acreditar que os que se entregam completamente a esta actividade não o sabem fazer de outra maneira, mesmo que não vejam reconhecimento desse esforço e dessa entrega, por parte de quem tem obrigação de o fazer.
Obrigada. Beijinho.
Isabel Ribeiro
Um abraço dos grandes, Isabel. Muito obrigado!