Lugar dos Dois Caminhos, 30 de Setembro
Esta manhã fui à Construtora, levantar a caixa de criptoméria que encomendei ao José Domingos. Preciso de um pousa-pés em condições e também de guardar alguns recortes antigos, e, como encontrei na garagem uma almofada linda, de ar levemente vitoriano, optei por fazer uma caixa para pôr debaixo dela.
Mandei as medidas terça ou quarta-feira. O José Domingos ligou-me ontem, a avisar de que podia levantá-la esta tarde.
Aproveitei e trouxe também duas pranchas de platex, para substituir o tecto da casa em que o Melville nos espera quando saímos – a Jasmim fica no meu escritório, feita princesa –, e uns calços para melhorar a sustentação dela. Juntei-lhes uns parafusos que faltava substituir aos bancos de jardim que o Chico recuperou, um vidro novo para o espelho partido quando andámos em pinturas, rolo e pincel para pintar a caixa nova com o Bondex que sobrou dos forros e duas mãos-cheias de pregos variados, porque um tipo guarda os restos das reparações todas mas, depois, nem sempre os encontra.
Passei meia hora na loja, não mais. Fui cumprimentar o Nuno à secção das tintas. O senhor que corta os vidros comentou uma crónica que tinha lido não sei onde. O empregado que me atendeu à saída era o cunhado do Chico.
E agora estou aqui, com essa parafernália espalhada à frente. Quase toda, isto é, porque ao tecto e aos calços da casota já os estive a montar. O vidro, que não cabia no meu carro mas o José Domingos me veio deixar atrás do portão, é melhor ser o Chico a colar, porque eu faço sempre asneira com o silicone. Mas está um sol lindo, os cães já se cansaram de brincar e a Catarina e os pais, depois de duas horas a assistir à partida de um veleiro de longo curso que aportou no Porto de Pipas, estão satisfeitos por hoje.
Portanto, acho que vou pintar já a caixa. Aquela almofada merece.
Disse há dias a um amigo que decidiu erguer uma casa que, se tivesse dinheiro para construir uma mansão, nunca construiria uma mansão. Ele não acreditou, mas é verdade. Talvez comprasse uma mansão velha. Gosto sobretudo disto: de recuperar. Das coisas velhas a que se dá uma segunda vida. Como eu sou, talvez. Ou espero ser, quando chegar a altura.
Lugar dos Dois Caminhos, 1 de Outubro
Daqui a pouco vou votar. Conheço as pessoas, estou convicto de que sei as diferenças que fazem e podem fazer. As autarquias não têm sobre as nossas vidas a influência dos governos e dos parlamentos, mas nós temos sobre elas a influência que não temos sobre os governos e os parlamentos.
Mas vou votar porque me sinto motivado para isso. Não vou votar porque votar seja um dever. Era o que faltava votar ser um dever.
O PREC já acabou: podemos parar com a Grande Educação. A abstenção é um direito da democracia. Nenhuma democracia é completa se não previr o direito à abstenção e nenhum cidadão é menos cidadão do que o outro – ademais trabalhando para sustentar-se, pagando os seus impostos e as suas contribuições – por não votar.
Nem sequer tem menos direito ao escrutínio do exercício dos cargos públicos.
Cansa-me, este paternalismo das campanhas ditas cívicas. Como me custa este moralismo que elas propiciam entre os sempre desejosos de evidenciar-se. Em regra, os números da abstenção dizem muito mais sobre a classe político-partidária do que sobre os cidadãos. E, mesmo quando o que dizem é sobre estes, estes continuam a ter o direito de se absterem.
De fazê-lo em consciência e até de fazê-lo sem consciência. Também esse é um direito da democracia.
À saída da assembleia de voto, cruzamo-nos com a D. L.. Vê-nos ao fundo e já vem chorando, vestida de negro.
Durante mais de 40 anos foi votar com o Sr. J., cidadão empenhado e mobilizador, que foi presidente da Junta e de uma série de outras coisas. Agora vai votar sozinha e, lembrando-se dele, chora.
Às vezes são as pequenas rotinas. Nas pequenas rotinas se concentra, frequentemente, a vida toda.
Lugar dos Dois Caminhos, 5 de Outubro
Mais um dia de sol. Um encanto: permite-me trabalhar no jardim, brincar com os cães sem que sujem a casa toda e até manter a rede de descanso montada a semana inteira. Mas a verdade é que, se não chove depressa, vamos começar a perder plantas.
Há dias esteve aí o Martins, que nunca tinha vindo à Terceira: nada o impressionou tanto como não termos de regar a relva no Verão. Pois não tarda vou ter de regar a minha. Já passo meia hora por dia a regar as iresines sob as acácias.
Ontem à noite houve até um incêndio florestal nos Regatos. Hoje, outro nas Guerrilhas. Deve ter sido uma vertigem, ao mesmo tempo. Conheço bombeiros açorianos que nunca tinham tido a oportunidade de apagar um fogo, quanto mais florestal.
Na quinta-feira, a previsão meteorológica dizia que no fim desta semana chovia muito. Havia um dia para o qual se esperava, inclusive, 47 milímetros de água num período de três horas, que é coisa para um homem construir uma arca, meter lá um casal de cada espécie e navegar até à Serra de Santa Bárbara.
Mas a verdade é que os 47 milímetros já não estão lá. Enquanto o vento não virar para Sul, nada feito.
A previsão meteorológica, aqui, permanece uma cartomância. A novidade é que, agora, se deixa surpreender pelo sol, e não pela chuva.
Artigo publicado no Diário de Notícias