Versão radiofónica: aqui
A minha relação com os aviões teve fases. Já fui o repórter que aterra de pé no cockpit, em companhias africanas capazes de voar com um dos vidros das escotilhas partido, e também o marido apavorado ao mais pequeno sinal de turbulência – sobretudo depois de uma arremetida com um A-310, não por acaso aqui na Terceira.
Voltar a viver nas ilhas libertou-me da vertigem. Uma pessoa habitua-se aos aviõezinhos da SATA – “avionetas”, como há sempre um turista a dizer bem alto –, e além disso voa tantas vezes aos trambolhões, e desce às cambalhotas, que fica (como se diz) vacinada.
De modo que foi com bonomia que há dias regressei de São Miguel, a que hoje vamos como quem vai ali abaixo à cidade, na urbana. Comigo, trazia ainda o conforto do convívio com leitores e colegas, em mais um festival Arquipélago de Escritores. E, porém, não parecia haver uma só pessoa, em toda a cabina, com um livro na mão.
Folheava-se a revista de bordo. Viam-se séries de televisão. Palrava-se sobre nada. Disfarçava-se o medo da ventania.
Repeti num murmúrio: «Se aquilo que escrevemos não vence os grilhões do seu tempo, terá a força da literatura? Poderá aspirar a ser literatura – será literatura?»
Poucas horas antes, participara num debate em que nos cabia discutir a coexistência entre esta e as chamadas redes sociais. Preocupáramo-nos em tranquilizar as hostes, lembrando que os livros já foram ameaçados pelos jornais, pelo cinema, pela TV, até pelo marco do correio – sobreviveram sempre.
Apesar disso, ali estávamos: o aviãozinho atravessou o mar, mostrou-nos o Pico, sobrevoou a Praia – e, quando aterrou, eu continuei sem descortinar um só livro. Já telemóveis, não houve vivalma que não erguesse um: para conferir as mensagens, os e-mails – e, claro, as redes.
Utilizo-as há uns dez anos. Tenho contas em várias e, evidentemente, já cometi erros. Expus-me de mais e disse tolices. Confundi a beleza e a graçola. Tomei o lado do Mal. Mas, por outro lado, nunca publiquei o clássico post de despedida, num ar de autoimportância: «Meus amigos, é chegada a hora de não-sei-quê, não-sei-que-mais…»
Nunca tive ilusões sobre o que as ditas redes significavam. Elas são uma caricatura da espécie, mais vezes tontas do que profundas, e aquilo de que falam raramente é o amor e a raiva, os mais nobres sentimentos, e antes quase sempre o hedonismo e o ódio, respectivos anjos negros.
Mesmo assim, acrescentaram-me leitores. Os meus livros completam-se nos leitores – são os leitores quem acaba de escrevê-los. E, conquanto as minhas concepções de êxito se mantivessem distintas para o exercício da literatura e a actividade na Internet – e, aliás, a minha preocupação continuasse a ser menos a de dizer: “Eu existo” do que: “Os meus livros existem e vêm daqui” –, tudo estaria bem.
Afinal, eu continuava a acreditar nisso. A literatura enfrentou sempre proibições, tabus, pragas, fomes, depressões. Nunca teve medo. Precisamente porque a ameaçavam foi literatura. E apenas porque prevaleceu foi literatura também.
Mas só quando cheguei ao terminal e verifiquei que permanecia toda a gente a olhar o telemóvel – incapaz de encontrar interesse no outro, na combinação dos elementos ou sequer nas rotinas da chegada –, tive a certeza: não se podem entender totalmente nem a força da preguiça, nem a tentação da fama, nem o risco do populismo (enfim, tudo o que define este tempo) sem se entender primeiro as redes.
Estar lá é o nosso cavalo de Tróia. Porque, entretanto, se não formos capazes de roubar os olhos das pessoas aos ecrãs – ao menos por um momento, ao menos de uma pessoa, ao menos de um filho dessa pessoa–, nada disto que escrevemos terá realmente significado.