Domingo, 11 de Junho
Ontem revi um trecho de vídeo do pós-25 de Abril. Vem no Torre Bela, sobre a Reforma Agrária em Portugal, mas foi no YouTube que o reencontrei. Em Manique do Intendente, Azambuja, um camponês sem instrução é doutrinado por outro no funcionamento da cooperativa que acaba de tomar conta do latifúndio.
– Qual é o valor da tua ferramenta? – pergunta o instrutor, já com a paciência nos limites.
Diz “farramenta”, no fulgor da juventude que lhe espreita sob o ar endurecido, e o seu propósito é explicar ao homem que de nada serve aquela recalcitrância: a passagem do instrumento que tem nas mãos para a posse da cooperativa não só é inevitável, como será benéfica para todos.
– Isso é da cooperativa – insiste, apontando a pá de valar, já puída, com que o outro chega da terra. – É da cooperativa. Não é teu, não é meu, não é deste: é da cooperativa
– É da cooperativa… – mastiga o homem, apoiado ao cabo da pá. Diz “comprativa”, num desleixo que tem algo de desprezo. – E os outros, que não trazem ferramenta nenhuma, a ferramenta deles é da casa deles. A minha fica da cooperativa.
Toda a vida serviu. Comprou aquela ferramenta para servir. Agora – suspeita – vai continuar a servir e nem sequer da ferramenta será dono.
– Isso já não é teu – insiste o mais jovem, exasperado. Vinca o tratamento por tu, como é suposto entre camaradas. – Isso é meu, é deste, é de todo o mundo!
O camponês ergue as sobrancelhas.
– Pode ser muito bem, mas… – Pondera. – Mas eu é que trabalho com ela. E amanhã preciso de trabalhar naquilo que é meu, num bocadito que lá tenho, e vou comprar outra? E depois essa outra fica a ser da cooperativa? E depois vou comprar outra e é sempre da cooperativa, pá?
Ganha um pouco de fôlego, agora, mas o tom permanece o de quem se vai deixar vencer. E talvez seja essa a maior diferença entre os dois: a determinação de um por oposição ao ar fugidio do outro – a certeza do que anuncia os novos tempos, a firmeza da ilusão, contra a desesperança de quem conserva o medo, ou então não chega a esperar que o ouçam.
São dois homens pobres, e o mais pungente é isso. Vejo todo aquele excerto, mais de três minutos de filme, e não chego a conseguir rir-me: limito-me a ficar ali, a olhá-los, como se naquele fugaz jogo de moralismo de um, indignação de outro e cansaço dos dois se concentrasse, afinal, a história do mundo.
– … sempre da comprativa. Tudo da comprativa e eu fico nu!
– Tu não ficas nu! Tu ficas com ma’roupa c’á que tens!…
Agora, de passagem novamente por Lisboa, estou numa leitaria da Joaquim António de Aguiar, com o Rui e a Sofia, a comer um brunch. Há pouco sentou-se aqui ao lado uma cantora famosa, com um ar jovial de domingo de manhã. Ao fundo, um casal trata o miúdo por você. Junto à porta, vão a sair três mulheres que passaram uma hora a falar aos berros, naquele à-vontade espectacular dos bem-nascidos.
Em todas as mesas o empregado foi obrigado a deter-se tempos infinitos. Explicou as diferenças entre as ementas. Parou em cada um dos itens, para que pudéssemos escolher as nossas combinações: sumo de laranja ou de frutos vermelhos; granola com ou sem mel, com ou sem fruta (e qual), com ou sem iogurte; tipos de pão e de corte; géneros de viennoiserie; variedades de queijo, carnes frias, manteigas, requeijões, compotas.
Nenhum pedido demorou menos de cinco minutos.
Eu olho para nós ali reunidos, para os nossos rostos bourgeois-bohème e para as nossas conversas levitantes, e torno a pensar naqueles dois homens da pá de valar. E é então que percebo que a grande mudança da minha vida, aquilo que mais me transformou nos últimos anos, a mim e à minha maneira de ver o mundo, nem foi a geografia: foi ter tornado a viver entre pobres.
Todos os dias me povoam, os pobres. Vejo-os mortos, na necrologia do Diário Insular e nos posts de Facebook da Funerária Meneses. Vejo-os vivos, passando à minha porta, tomando café ao meu lado na venda, arrastando os chinelos.
Levo-os de boleia até à cidade. Leio-lhes as cartas das Finanças. Tento dar-lhes apenas a roupa usada efectivamente em condições – converso com eles sobre o tempo e as tradições, o desemprego e a reforma, o cheque grande e o pequenino, os horários do centro de saúde e os medicamentos.
Eles falam-me da minha horta, da memória do meu avô e de como estou delgado desde que me inscrevi no ginásio. Talvez até achem, alguns, que sou mais pobre do que eles, aqui nesta casa pintada de dois em dois anos, sozinho com uma mulher, trabalhando ambos horas infinitas, sempre no meio dos livros, com dois cães a fazer o lugar dos filhos que não há.
Não importa. Ter tornado a viver entre os pobres depois de ter vivido entre os ricos, ter eu próprio voltado a viver modestamente, foi o que me abriu horizontes. Ter-me lembrado de que ser pobre não é ser o vizinho do rés-do-chão que tem os filhos na escola pública, foi o que me fez deixar de confundir o cinismo com a inteligência. Ter tornado a viver entre os pobres, entre esses tantos que vivem sem dinheiro, expectativas ou desejos de transformação, foi o que me fez deixar de acreditar no valor instrumental da certeza absoluta.
A autoproclamada esquerda de Lisboa não sabe nada disto. E tudo o mais, desconfio de repente, enquanto debico na minha granola com mel – tudo o mais vem daí.