ESTROBOSCÓPIO ACIDENTAL (1 de Julho de 2020)
* nos 50 anos de rádio de Fernando Alves, o mestre
Certa manhã, há muito menos anos do que agora me parece, acordei com uma dúzia de mensagens acumuladas no telemóvel. Diziam coisas como: «Leram a tua crónica na TSF», «Acabei de ouvir um texto teu na rádio», «O Fernando Alves voltou a falar de ti.» A minha perplexidade só aumentou, porque não era de facto a primeira vez. Desde que começara a publicar no Diário de Notícias a coluna a que dera o nome A Vida no Campo, e com a qual procurava perceber o que verdadeiramente pensava sobre a natureza do meu regresso dos bairros históricos de Lisboa ao Lugar dos Dois Caminhos, freguesia da Terra Chã, ilha Terceira, que tanto a Revista de Imprensa como até o Sinais lhe faziam referências tão generosas como inusitadas. De repente, era como se nos tivéssemos posto a dialogar um com o outro, o Fernando e eu. A suprema voz da rádio portuguesa, o irredutível da palavra e do som – e um obscuro escritor de parca obra, ademais instalado agora numa freguesia recôndita de uma pequena ilha num arquipélago perdido. Mal nos conhecíamos. O Fernando tinha-me convidado uma vez para ir ao seu programa, a propósito do lançamento de um livro menor publicado ainda na juventude, e aparentemente chegara a acompanhar um blogue em que eu, lisboeta ainda, procurava definir-me por entre as convenções da cidade. Mas não voltáramos a encontrar-nos desde esse primeiro dia – tudo aquilo a que eu podia aspirar era a ser um admirador. Enviei-lhe um e-mail a agradecer o persistente destaque, e a resposta foi mais inesperada ainda: «Gostava de pedir-lhe que, quando estes textos forem reunidos em livro, me deixe ser eu a apresentar esse livro.» Já na altura eu dava por mim, frequentemente, a escrever com a voz do Fernando em mente. As leituras que ele fazia dos meus textos davam-lhes outras vidas ainda – como que os faziam reencontrarem-se consigo mesmos. Mas na altura ainda não era evidente, para mim, que viesse a haver livro. «É claro que haverá livro…», suspirou ele. «Era o que faltava não houver livro.» Houve livro, e a apresentação que o Fernando lhe proporcionou – sem desprimor para todas as outras apresentações de todos os meus outros livros, sempre bondosas, tantas vezes brilhantes – foi a mais extraordinária de que alguma vez beneficiei. Ele estava dentro e por dentro dos textos. Ele era aqueles textos também. A quantidade de gestos de generosidade de que o dito livro e eu próprio fomos alvo a partir desse dia, já então nos tratávamos por tu, nunca mais parou. Houve um programa de rádio inteiro só com a música que o livro invocava. Houve um documentário de rádio – a que o Fernando, na sua irreprimível humildade, chamou sempre «reportagem» – sobre os respectivos lugares e personagens. Houve uma participação redentora do Fernando na adaptação do livro ao teatro, da responsabilidade da companhia Narrativensaio, e que percorreu o país. Os instantes, encontros e sensibilidades que partilhámos desde então, a propósito disso e de tanto mais, não caberiam neste espaço. Tornámo-nos como que uma trupe, em volta da Narrativensaio – nós e a Luísa Pinto e o António Durães e a Filipa Guedes e o Carlos Tê e o Bruno Santos e o Rui Carvalho e a Catarina Ferreira de Almeida (enfim, a minha Catarina). E, ainda assim, continuou a ser o Fernando o centro dela, dessa trupe, porque ninguém queria mais fazer parte dela do que ele. Generosidade, outra vez. Disponibilidade. Desejo. Paixão. Esperança. Disso tudo falou aquele tempo e disso tudo tem falado este tempo. Um tempo que às vezes cristalizo numa só sequência: eu e o Fernando percorrendo a Terceira, a recolher depoimentos das personagens do tal livro para o tal documentário a que ele chamava reportagem; o Fernando gravando diligentemente as palavras de um velho simples da Terceira, tremente de medo (era visível) de que o gravador falhasse de repente, ou o homem interrompesse o seu raciocínio, ou ele próprio tivesse carregado no botão errado; e, finalmente, o Fernando saindo da entrevista, sentando-se no carro, conferindo nervosamente o registo sonoro e erguendo os punhos cerrados, o rosto virado aos céus, num triunfo de menino: «Ganda som! Ganda som! Ganda som!» O menino da voz tonitruante. Que lição para todos nós, jornalistas que perderam a esperança. Escritores que tantas vezes perderam o desejo. Criadores que se esqueceram da paixão. Como se não bastassem as mais belas crónicas, reportagens, entrevistas e palavras da rádio portuguesa – cinquenta anos disto, um profissional e um homem completos. E mais anos ainda, felizmente. Outros tantos, se possível fosse. Porque, para homens assim, não há fim, nem morte, nem sequer declínio. Fernando Alves gosta como se amasse e desgosta como se detestasse. Tem o lastro dos grandes: é daqueles de quem nos fazemos realmente amigos e – por razões semelhantes – desses, raros, para os quais as coisas podem correr de facto bem e também podem correr de facto mal, porque são sempre de verdade. Chamo-lhe intimidade, se me for desculpada a rima. Intimidade com o outro, com o mundo, com o gesto de existir. Alguém assim não envelhece. E, um dia que tenha de se remeter ao silêncio, a sua voz e o seu amor continuarão aí, pairando, até que viva o último que o abraçou ou ouviu.«Que lição para todos nós, jornalistas que perderam a esperança. Escritores que tantas vezes perderam o desejo. Criadores que se esqueceram da paixão. Como se não bastassem as mais belas crónicas, reportagens, entrevistas e palavras da rádio portuguesa – cinquenta anos disto, um profissional e um homem completos.»