Versão radiofónica: aqui
Estou na fila para a caixa do supermercado e à minha frente há só um rapaz. Traz andrajos de rapper, tão datados para este tempo como para a idade dele, e na mão leva apenas uma caixa de gelado de marca dita branca.
Antigamente eu teria pensado que a compra, de tão singela, só poderia ter um fito: um momentinho de namorisco com a rapariga da caixa, neste caso a Flávia – mesmo cirandando por ali, a discutir os chocolates em vozes bem altas, aqueles que me pareciam ser a mulher e os dois filhos precoces do rapaz.
A Flávia é uma rapariga bonita, com um sorriso franco: a caixa dela é sempre popular. Mas desta vez eu sei logo o que rapaz vai fazer. Então, pede à Flávia que lhe confira o preço do gelado, esta aponta-lhe o leitor electrónico, diz:
– Dois euros e sete.
E ele agarra na caixa e vai pô-la de volta na arca, ajustando o capuz sobre a testa, num gesto inconsciente.
Custa-me tanto, aquilo, que só não vou lá buscar o gelado, de modo a oferecê-lo às duas crianças, para não ferir a dignidade do pai.
Digo a mim mesmo: esquece, Joel – saem daqui e acendem logo os seus cigarros, ele e a mulher. Não tarda estão a brincar no Facebook, com os seus telemóveis da maçãzinha, e o resto da tarde passá-lo-ão a ver a TV Cabo, fumando para cima dos miúdos.
Mas, ao pensá-lo, tenho ainda mais vontade de lhes oferecer o gelado – às crianças e aos pais, crianças também.
Quando me juntei a este espaço, fizeram-me um só pedido: que tentasse fazer reflectir nas crónicas ao menos uma notícia da actualidade – mesmo que uma breve de jornal. Portanto, cá vai: naquele dia do supermercado, o país acordara alarmado com a informação de que 17,2 % da sua população se encontra em risco de pobreza. Hoje, quando escrevo, soube-se que o número dos Açores não é 17,2 %, mas de 31,8 % – quase o dobro.
O resto nem sequer vem nos media. Mas devia vir.
Regularmente ou em permanência, estas ilhas lideram destacadas os rankings nacionais de analfabetismo, insucesso e abandono escolar; de violência doméstica, abuso sexual e gravidez precoce; de alcoolismo, obesidade infantil e diabetes; de violência contra as pessoas, de suicídio jovem e de dependência do RSI.
Entre outros.
Durante anos, insisti nestes números em público, repetida e até fastidiosamente, na esperança de que ao menos a estratégia do pica-pau pudesse surtir algum tipo de efeito. Fazia sempre uma excepção: a mortalidade infantil. Uma vez referira-a também, por engano, e logo recebera um telefonema de um assessor do Governo. Há dias, ficámos a saber que também na mortalidade infantil os Açores comandam agora.
Falamos em “risco de pobreza”, mas por eufemismo: é pobreza mesmo, porque vai muito além da economia. São todos os sinais de subdesenvolvimento humano concebíveis. Verificam-se numas ilhas remotas, com uma paisagem linda, e o país assobia para o lado, porque a Madeira teve aquele palhaço do Jardim durante quarenta anos e deve ser pior.
Não é. E os Açores precisam de ajuda. Precisam do escrutínio dos portugueses – por muito que ouvi-lo desagrade às suas chamadas elites (posição, oposição e intelectuais incluídos), seguras de que a autonomia é princípio que chegue para se sobrepor aos valores.
Também não é. Os valores são as pessoas. As pessoas – demasiadas pessoas – estão enfiadas em bairros sociais, escondidas por detrás das cinturas de habitação menos indigna que agora se constroem à volta, para disfarçar a miséria. E as crianças, que nunca conheceram outra coisa, não sabem sequer o que podem desejar senão isso também: a miséria.
Precisamos de ajuda. Em socorro das pessoas e da própria autonomia.