Versão radiofónica: aqui
No meu primeiro comício político, acabámos os discursos e sentámo-nos a comer. Éramos mais de mil e, concluído o jantar, alguém foi à cabina de som e pôs a rodar o Apita o Comboio. De um salto, militantes, deputados, eleitores anónimos e até uma candidata a presidente do Governo puseram-se a fazer um comboio humano, balançando num sorriso tolinho, as mãos nos ombros do dançarino da frente, porque eram todos pessoas muito populares e divertidas.
Foi a primeira vez que me olharam de esguelha: «Não danças?!» E eu podia, realmente, ter dançado o Apita o Comboio, que já o havia dançado muitas vezes. Mas não tinha bebido o suficiente.
Talvez devesse ter abdicado ali. Só que sou de um território de fronteira, com um desenvolvimento humano a roçar o terceiro-mundista e massa crítica nenhuma – sempre achei que devia dedicar alguns anos ao bem comum. Chamar-me-ão um romântico: passei de mandatário a dirigente e daí a coordenador de um programa eleitoral que nunca impus.
No papel, éramos social-democratas. No discurso, neo-liberais. Na imagem, neo-conservadores. Levámos uma goleada, e nem foi por isso: a posição continuava imbatível. Mas o que eu trouxe da política partidária, fora um ou dois amigos, foi sobretudo a ideia de que quem ali está são os piores. E, se não são os piores, então a política partidária não consegue tirar deles senão o pior que têm.
Mexericos. Mentiras. Invejas. Todas as piores técnicas de sobrevivência postas ao serviço da mais mesquinha vaidade – eis o balanço que faço daqueles cinco anos. Coleccionei muitas personagens, que um dia me serão úteis num romance pícaro. Mesmo assim, chegava a casa deprimido. O supremo adversário de cada um de nós era o homem ao lado dele.
E a grande decepção nem era com os outros: era comigo. Porque, no fim, também eu mentia. E mexericava. E fazia citações pobrezinhas. E proclamava certezas absolutas. De modo que, no dia em que dei por mim de braços no ar, quase a juntar-me ao comboio que já dava a volta ao salão, dobrei os papéis, fiz uma vénia em volta – e vim-me embora.
Isto foi nos Açores, mas podia ter sido em Trás-Os-Montes ou em Lisboa. De resto, quando conhecidos meus me confessam que no partido deles é igual, não me custa a acreditar. Os partidos políticos são assim: as cúpulas, em regra, deploráveis – as bases, quase sempre, ainda piores.
Por isso me inquieta tanto que, regressadas as eleições, regressem com elas os apelos ao voto. Dos candidatos aos activistas de Facebook: toda a gente desafia os abstencionistas a irem às urnas. “Um dever cívico”, dizemos. E, de facto, a participação eleitoral é prova de solidez democrática. Mas em quem estamos a pedir que as pessoas venham votar? E, aliás, que pessoas estamos a pedir que venham votar?
É que, entretanto, tivemos Trump, Bolsonaro ou Boris Johnson, levados ao poder por esse misto de ódio e de medo que tem recuperado tantos abstencionistas. A Internet já fez triunfar o Bem (como com Obama) e já fez vencer o Mal (como com o Brexit). O exemplo inglês, porém, é aterrador.
Softwares de ponta, com algoritmos sofisticados, são hoje capazes de ler milhões de posts de Facebook; de cruzá-los com cadernos eleitorais e sondagens; e de, com isso, criar micro-segmentações de indecisos “e” abstencionistas que permitem aos correligionários de qualquer causa – qualquer causa: boa, má ou tenebrosa – comunicarem in-di-vi-du-al-men-te com milhões e milhões de eleitores, gerando diferentes alarmes que efectivamente arrancam de casa quem nunca se interessou.
Hoje, dizer “Votem!” àqueles que não votam ainda nos parece bem-aventurança. Mas eu pergunto-me se, devagar, não está a transformar-se, antes, num contributo para despertar o medo e o ódio que vão consagrando estes como os anos do populismo – se não pior.
Com partidos cultos e responsáveis, talvez ainda pudéssemos contar com algum escrutínio. Assim, já me apetece celebrar o direito à abstenção, aliás reconhecido constitucionalmente. Talvez devamos, afinal, ficar em casa – todos nós, os que nunca se interessaram. Parece antidemocrático, mas é uma reflexão a que não poderemos fugir. Por que há-de o futuro de ser decidido por quem nunca se mobilizará a não ser pelo ódio e pelo medo?