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O Consórcio de Jornalistas por detrás do caso Luanda Leaks tem produzido resultados inestimáveis, que desmascaram Angola e Portugal, Isabel dos Santos e cada um de nós também.
A verdade é esta: todos sabíamos de onde vinha o dinheiro. Nós, os políticos – os empresários e gestores, os funcionários e prestadores de serviços, os que fizeram negócios com Luanda ou emigraram para Angola – nós, os portugueses.
Há graus de dolo? Há. Há necessidades essenciais mais atenuantes do que a acumulação de riqueza? Há. Mas, nesta história, poucos de nós (por muito bem que mintam a si mesmos) são inocentes. Enganado, ninguém foi – melhor será não esmurrar o peito.
A corrupção é uma das doenças do Ocidente e do seu centrão, e, quando a combinamos com os recursos, a desigualdade e a escassez de massa crítica de África, temos a tempestade perfeita. Mas a extensão do termo Leaks a este caso inquieta-me. E eu gostava de saber mais sobre o que vai acontecer às fontes do Consórcio – nomeadamente ao hacker.
O dever de informar sobrepõe-se muitas vezes à lei. Sem isso, o mundo seria – como foi e pode voltar a ser, com a crise que o jornalismo vive – um faroeste. Mas a mitificação da figura do hacker, aliás estimulada pela cultura pop – e mesmo quando lhe chamamos whistleblower, como ao cúmplice arrependido que não é –, não representa perigo menor do que a corrupção.
Ainda há umas semanas soubemos que Joseph Bezos, da Amazon e do Washington Post, terá sido hackeado com um vírus enviado para o seu telemóvel pelo próprio príncipe da Arábia Saudita, com quem almoçara. Pretendia Bin Salman chantageá-lo para que o jornal fosse mais brando com o regime saudita. E, feito o hacking, terá divulgado via National Enquirer (onde tem amigos e dependentes) mensagens privadas entre Bezos e uma amante.
O ataque destruiu a família de Joseph Bezos. É o problema em concreto. Já o problema em abstracto é que o hacking constitui hoje uma realidade sem controlo. Nenhum país tem enquadramento jurídico actualizado para ele, desde logo porque ele é mutante. E, pior: aqueles a quem cabe fiscalizá-lo vivem escassos de meios, até porque, nesta sociedade de solidões, o número de garotos agarrados ao computador no sótão esconso da casa dos pais cresce todos os dias.
Os hackers podem salvar o mundo e podem destruí-lo. Podem acabar com o que resta do jornalismo e podem tirá-lo da agonia. Só que o modus operandi é o mesmo em todos esses casos. Rui Pinto, de que tantos têm feito herói (primeiro o FC Porto e Ana Gomes, agora toda a gente), começou por desmascarar o Benfica, mas também por tentar a extorsão. E um dia destes pode revelar um caso extraconjugal, uma pequena fuga às Finanças (de que nenhum de nós é inocente) ou até uma mentira qualquer sobre algum dos adversários que vai acumulando.
Esse adversário pode ser um magistrado. Um jornalista. O leitor.
Claro: matéria tornada pública é, em si, facto. Mas a justiça não pode fazer-se por meios ilegais – ou com recurso a gente passível de se comprar e vender –, por muito nobres que sejam os resultados. O jornalismo pode, se em investigação deontologicamente inatacável. Mas no fim tem de se submeter ao escrutínio legal na mesma. E, em ambas as situações, urge actualizar a nossa monitorização desta realidade. Melhorando diariamente a lei. Reforçando diariamente os meios para a defender. Trazendo os hackers para o lado do Bem, talvez – mas nunca a troco de imunidade.
Até para defesa do jornalismo.
Os novos justiceiros são hoje a suprema ameaça. No limite, está em causa a própria civilização. Até porque de justiceiro a messias vai um passo – como já aconteceu.