Versão radiofónica: aqui
Primeiro foi em São Miguel, numa roda de escritores: «O gajo até diz umas verdades…» Decidi vê-lo como uma provocação. A seguir foi cá em casa, ao fim de um jantar farto: «Ao menos não é como os outros políticos, que não falam de nada que interesse às pessoas…» Pensei que devia ter cozinhado antes o feijão assado. Entretanto foi entre lisboetas, gente culta, já não sei a propósito do quê: «Alguém tinha de dizê-lo, e só ele o disse….»
E eu devia estar grato. Nunca escolhi os meus amigos pelas inclinações políticas: escolhi-os sempre pela intimidade. Para mim, as pessoas ou são íntimas, capazes de deixarem entrever as suas emoções e de se compadecerem das emoções das outras, ou interessam-me pouco. De resto, quanto mais diversidade melhor – mais me mostram sobre a marcha do tempo.
Mas preocupam-me estes crescentes sinais de condescendência – mesmo de aprovação – de gente que conheço, até de gente que estimo, para com as verdades absolutas de André Ventura. Só ontem, quatro tipos no meu Messenger, tipos da direita moderada, manifestaram algum género de apoio ao Chega. Esta manhã, um deles distribuiu inclusive um vídeo com um discurso de Ventura no Parlamento.
E de pouco nos serviria agora argumentar que nem o próprio Ventura acredita no que diz. Porque o facto é que acredita numa coisa pior: que dizer isto ou aquilo, desde que soe ao que o eleitor julga ser o seu anseio, tem um mérito em si mesmo.
Eu já sabia que isto acontecer, claro. Sabia que seria depressa – todos o sabíamos. Mas nunca pensei que fosse tão depressa. E, provavelmente, está a ser mais depressa ainda, porque, se é assim entre gente educada, imagine-se por esses cafés de Portugal onde se vê a CMTV e se usam provérbios à laia de prova irrefutável.
Quando começou esta legislatura, cheguei a celebrar as trapalhadas de Joacine, onde julgava encontrar a virtude de, pelo menos, desviar as atenções de Ventura. Hoje, suspeito que até ela, voluntariosa e egocêntrica, fez Ventura parecer de repente um estadista.
Como o fez o dito Centrão e o seu reiterado vazio de compromisso. Como o fez mesmo a generalidade da esquerda, de novo mais interessada no acessório que a divide do que no fundamental que devia uni-la.
Eu julgava estar preparado, até porque acompanhei in loco como as comunidades luso-americanas celebraram Trump, um inimigo da imigração, e vi como os meus amigos protestantes brasileiros aclamaram Bolsonaro, um sociopata desprovido de compaixão. Mas talvez nunca estejamos realmente preparados para esse momento em que o Mal toma de assalto os que nos são mesmo próximos.
Culpo-me a mim. Culpo-nos a nós. Passámos tanto tempo a beber cerveja, como se celebrar a vida fosse testemunho suficiente, que agora nem sabemos como voltar atrás. Devíamos ter lembrado mais vezes, mesmo que preventivamente, que a verdade fácil e indiscutível, como a de Ventura e dos populistas em geral, é sempre tão demasiado fácil e indiscutível que não só acaba contraditória, mas é de facto mentira – uma cortina de fumo.
Agora é mais difícil, porque do alerta à dicotomia vai um saltinho. E quando a dicotomia pega vira tribo, e quando a tribo pega vira ódio, e quando o ódio pega já não há nada a fazer.
Deixarmo-nos uns aos outros à mercê do que conseguimos decifrar sozinhos – eis o risco, hoje. O monstro tem voz de menino e penteia-se como o filho que uma mãe gostaria de ter. E já há sondagens para provar que estamos a perder a guerra.