Segundo volume do diário A Vida no Campo, A Vida no Campo: Os Anos da Maturidade chega ao mercado a 24 de Maio, com chancela da Cultura Editora. A edição inclui recomendação especial de Miguel Sousa Tavares e o lançamento está marcado para 27 de Maio, às 18h30, na Fnac do Chiado (Lisboa), com apresentação de Pedro Mexia. JoelNeto.Com avança com uma pré-publicação:
‘A Vida no Campo:
Os Anos da Maturidade’
de Joel Neto
«ANÚNCIO
Aos domingos vamos tomar o pequeno-almoço aos Biscoitos. Subimos da Terra Chã à Matela e seguimos Veredas acima, rumo aos Três Cantos e ao Pico Gordo. Paramos na padaria da Sra. Délia, voltamos ao automóvel, informamos os cães de que chegou a hora de passear e apontamos à Fajã da Serreta, com o carro aos baldões já, os bichos numa excitação.
Chegados aos Altares, somos forçados a abrandar. A filarmónica percorre as ruas da freguesia, atrás da coroa do Espírito Santo, e agora não nos resta senão guardar reverência.
Passam os saxofones e as trompas de harmonia, as percussões, os clarinetes. Passam os mordomos, as mulheres dos mordomos, os filhos e os pais dos mordomos. Passam as bandeiras, os estandartes e a demais iconografia trinitária – e só quando finalmente passam também os fiéis de circunstância, zelosos de um momento de intimidade com o séquito-real, podemos passar nós.
Então, passamos e eu lembro-me das Geórgicas. Lembro-me sempre das Geórgicas:
Como seriam venturosos os camponeses, se conhecessem
os seus bens!
Mas depois torno a olhar as mulheres dos mordomos, a nutrição magnífica com que preenchem por completo os seus vestidinhos de cetim cor-de-rosa, e acho que estes agricultores não merecem essa condescendência, porque estão conscientes dos seus bens e quem não está, provavelmente, somos nós, que a cada momento precisamos de recordar-nos o que nos distingue deles.
Oh, como são belas estas camponesas, retesadas por debaixo dos seus folhos cor-de-rosa, caminhando a par da filarmónica naquela indecisão de quem amanhou a terra e, ainda assim, não tem a certeza de ser sua merecedora. Que histórias contam os seus rostos rubicundos, os braços rechonchudos, as pernas barbeadas com uma lâmina velha. Como sofreram cada uma daquelas nódoas negras, estas mulheres – onde foram comprar aqueles sapatinhos de fivela, a quem pertenceram aqueles chapéus de véu antes de lhes pertencerem a elas?
Imagino-as comprando os sapatinhos na Loja dos Barateiros, ainda a Loja dos Barateiros existia. Lembro a minha avó e a minha mãe e nós próprios, crianças ainda, comprando sapatos na Loja dos Barateiros, por entre os escombros de um terramoto, os caterpillars empreendendo contra a morte e a pobreza – na cidade, pelas freguesias, nas nossas próprias casas.
Lembro o quintal transformado num estaleiro: os trolhas do continente, os cigarros e os palavrões e os copos de aguardente e essa solicitude triste em que fomos fundados, todos nós os do meu tempo, no quarto dos fundos de um país antigo e por concretizar.
Levam-me de volta à infância, as festas e as funções do Bodo. Somos sempre nós, outra vez, quando passam estas filarmónicas, e brilha este sol, e estas casas estão pintadas de fresco, e estas mulheres tornam a abrir as arcas e a tirar de lá os seus vestidinhos cor-de-rosa.
É aí que começa a Primavera.»