“Se foram a linguagem e a escrita que distinguiram os humanos dos animais, foram as histórias que primeiro distinguiram os humanos dos humanos. Em suma, foram as histórias que tornaram o Homo Sapiens um homem.” Uma homenagem à longa tradição das histórias e dos seus contadores: nesse esforço se baseou a intervenção de Joel Neto no festival Correntes d’Escritas 2019.
O autor de Arquipélago e Meridiano 28 visitou a Escola Secundária Eça de Queirós na companhia de Teolinda Gersão, Carlos Quiroga e Milton Hatoum; e dividiu com Goretti Pina, Hélia Correia, Miguel Sousa Tavares, Mempo Giardinelli, Manuel Rui e Sandro William Junqueira, no palco do Cine-Teatro Garrett, uma mesa-redonda intitulada “E nunca as minhas mãos ficam vazias”. Ambas as sessões foram profundamente concorridas, como é frequente no festival da Póvoa de Varzim.
Leia abaixo, na íntegra, a intervenção de Joel Neto:
Em defesa das histórias
©Joel Neto, Póvoa de Varzim, Correntes d’Escritas 2019
No Outono em que publiquei o meu primeiro livro, faz não tarda vinte anos, um escritor não muito mais velho do que eu, acabado de receber um prémio importante, deu uma entrevista em que dizia: “Se quisesse contar histórias, ia escrever telenovelas.” Eu lia com frequência entrevistas de escritores, mas só naquela altura começava a lê-las com o escrutínio de um autor, ainda que na altura bastante jovem e totalmente imberbe. E, para dizer a verdade, não percebi logo que se tinha convencionado existirem dois caminhos opostos e, um dia, eu próprio daria por mim sob o desafio de escolher um deles. Sobretudo, assaltou-me uma perplexidade: porque haveria um tão antigo e respeitável impulso como o de contar histórias de ser alvo, agora, de uma tal condescendência – de um tal ataque?
O meu mundo era então bastante exíguo, como talvez até nem tenha deixado de ser, mas o facto é que todos os grandes escritores que eu conheciam eram também extraordinários contadores de histórias. Eu percorria a cronologia da grande literatura (de Homero a Salman Rushdie, por exemplo) e via-o. Saltava no tempo ao contrário (sei lá, de García Márquez a Shakespeare) e continuava a vê-lo. Pululava entre continentes (do Livro de Jó a Melville, de Endō a Coetzee), deixava-me até estar no mesmo país (de Dostoievski a Tolstoi ou de Balzac a Proust) – nunca deixava de vê-lo. Que espécie de insolência, que tipo de arrogância poderia levar um autor de vinte e tal anos, como éramos os dois, a comparar tais cronistas do progresso civilizacional, tais bardos da existência humana à simples récita escolar da vidinha acéfala, como já então eram muitas telenovelas e – principalmente – o meu colega parecia considerar serem todas as telenovelas?
Com o tempo, percebi que não era só ele. Décadas passadas sobre o nascimento do pós-modernismo, outros escritores – cada vez mais escritores, escritores de cada vez mais idades, géneros e línguas – fugiam da ideia de contar histórias. A crítica literária aplaudia-os, a intelligentsia da literatura premiava-os. A certa altura, tornou-se até necessário inventar um nome diferente para aqueles que persistiam em acreditar no poder redentor das histórias. Eram os tipos da fiction, não da literature. Eram malta do storytelling. Gente do plot, apenas isso – narradores do “arco da narrativa”, se viéssemos a precisar de uma designação portuguesa. E a tendência, alcandorada nas visíveis fragilidades do império da chamada cultura pop (mais do que popular), não só continuou a acentuar-se como foi espalhando tentáculos. Ainda há dias soube de um concurso público para subsídios ao cinema em que os projectos de filmes que se esforçavam por contar histórias foram quase todos chumbados. Muitos dos subsidiados, pelo contrário, levavam como elogio expressões como “um filme quase sem peripécias”, repleto de “contemplação e filosofia”.
Evidentemente, há nisto um desejo de pertença quase comovente. Persiste em parte do nosso establishment cultural (chamemos-lhe assim) a ansiedade de, a cada momento, se provar de acordo com os parâmetros do seu tempo – de se provar moderno e integrante da tribo. Nesse sentido, talvez convenha desfazer a comparação entre o mundo da literatura e o tal concurso de subsídios ao cinema, ao qual os jurados não podem concorrer durante vários anos, pelo que não são profissionais da actividade e, portanto, só podem pertencer-lhe – cá está a palavra de toque – no próprio acto de ajuizar. Mas, infelizmente, há também nesta tendência uma ignorância atávica, que ainda por cima é de dupla natureza.
Em primeiro lugar, existe sempre uma história, mesmo para quem queira fugir dela. Lembro-me de um exercício que um velho professor de liceu costumava fazer connosco a propósito de um pequeno poema de Ungaretti, chamado Mattina, e de que na altura se dizia ser o poema mais pequeno do mundo. Rezava assim:
M’illumino
d’immensoApenas isto: «Deslumbro-me de imenso» – e era quanto lhe bastava. Então, perguntava às suas turmas o velho professor: «Qual é a história deste poema?» Na primeira fila, invariavelmente, alguém esticava um dedo: «Não há história, senhor professor, são só dois versos.» E voltava ele: «Ah, mas há uma história… A minha é de um homem que acorda manhã cedo, numa cabana sobre um vale iluminado pelo sol, as montanhas recortadas lá ao longe, e, mais longe ainda, na memória dele, o sabor do beijo da mulher que ele amou naquelas montanhas. E a tua história, qual é? O que vês tu escondido naquelas duas palavras, M’illumino/ d’immenso?»
Há sempre uma história, mesmo que tenha de ser o leitor a escrevê-la: a história está lá, e quem se esforce por fugir-lhe fracassa. Se trabalhadas literariamente, duas palavras bastam, como sabia o meu velho professor. É essa, às vezes, a nossa primeira ignorância. A outra, talvez mais deplorável ainda, tem que ver com o próprio desenvolvimento da nossa espécie e o papel que as histórias representaram na sua sobrevivência. Sabe-se hoje, ao contrário daquilo em que durante tanto tempo acreditámos, que a evolução dos hominídeos não é uma linha contínua. Pelo contrário, houve muitos milhares de anos em que o Homo Sapiens coexistiu com outros seres humanos, como o Homem de Neandertal, o Homo Ergaster e o próprio Homo Erectus. Os registos de convívios entre essas espécies é escasso e os sinais de confrontos entre elas também. Mas três dessas espécies extinguiram-se, enquanto uma delas sobreviveu. Precisamente a mais frágil do ponto de vista físico, aliás. Num duelo corpo-a-corpo com um Homem de Neandertal, portento atlético preparado para os climas mais vigorosos, um Homo Sapiens não chegaria a sair do canto do ringue. Porque lhe terá sobrevivido?
Sobreviveu-lhe porque, muito antes de inventar a escrita, aprendeu a contar histórias. Consolidando essas histórias, unindo-as umas às outras, estabeleceu mitos. E abrigando-se sob esses mitos, invocando-os e levando os outros Homo Sapiens a abrigarem-se sob eles também, desenvolveu a cooperação, que na verdade foi aquilo que distinguiu as sociedades Sapiens das dos restantes hominídeos (e as fez sobreviver). Mitos de índole ética ou religiosa, mitos de natureza económica ou ideológica, mitos de acepção nacional ou mesmo – tantos milénios depois – futebolística: foram essas histórias a proporcionar a convicção de identidade comum, de interesse comum e, portanto, de defesa comum também. Com o curso dos milénios, os Homo Sapiens aprenderam a defender-se juntos dos animais selvagens, a conter juntos o curso de um incêndio, a cavar juntos a terra, a reconstruir juntos a aldeia depois de uma inundação. E, tivesse um deles de subir ao ringue com um Neandertal, nunca iria sozinho. Iriam com ele as centenas de outros membros do seu bando, enquanto o Neandertal nem um amigo das poucas dezenas de espécimes do bando dele conseguiria recrutar. Não sabia contar histórias: acabava por ser uma luta desigual.
Portanto, se foram a linguagem e a escrita que distinguiram os humanos dos animais, foram as histórias que primeiro distinguiram os humanos dos humanos. Em suma, foram as histórias que tornaram o Homo Sapiens um homem. E foi a essa evidência, a esse poder salvífico, que, consciente ou inconscientemente, a literatura sempre prestou tributo. Porque haveria de deixar de fazê-lo agora, ademais de modo deliberado? Quer dizer: porque é que nos cruzamos hoje tão frequentemente com histórias de editores prestigiados que rejeitam, aliás sem os reconhecerem, manuscritos de Dickens, Austen ou mesmo Stevenson que alguém, maliciosamente, lhes envia? Apenas porque menos gente do que devia leu esses autores? Pela simples ignorância que os leva a considerar aqueles dilemas fora deste tempo? Ou, mais provavelmente, porque aqueles textos não lhes parecem opacos o suficiente para sequer merecerem publicação – ou talvez transparentes o suficiente, ou as duas coisas, tendo em conta a nossa tão obsessiva dicotomia entre o que é experimental para os literatos e o que é light para a populaça?
Sei isto: as histórias contêm um segredo. As verdadeiras histórias estão lá desde muito antes de o escritor se sentir sequer tentado a procurar o seu conceito. Interessam-lhe porque alguma coisa nelas o comoveu, lhe provocou um breve calafrio, lhe fez arrepiar um pêlo. E ele, determinado a não falhar com elas, esforça-se por seguir o fluxo delas como Teseu seguia o fio de Ariadne ou Jean-Baptiste Grenouille o cheiro singular de cada uma das suas vítimas. Em algum momento, querendo-o, as histórias hão-de revelar o seu significado. Até pode acontecer que o autor nunca chegue a intuí-lo por completo, guardado que está este apenas para o leitor. Mesmo assim, elas continuarão a guardar outros significados ainda, outros segredos, para que não só outros leitores, com outros dilemas, encontrem redenção nelas, mas aquele mesmo leitor torne a encontrá-la noutro momento da vida, ou até noutro momento do dia.
Nenhuma história é apenas uma história. Parece óbvio, é óbvio, mas às vezes as coisas mais óbvias são as que mais precisam de ser declaradas. As histórias não são meras “peripécias”, ao contrário do que pretendem os seus inesperados adversários. A histórias foram aquilo que nos fez homens e continuam a ser aquilo que nos faz homens, porque também são aquilo que os computadores nunca conseguirão criar – não bem feito, pelo menos. Ainda não conheci melhor instrumento para o trabalho da linguagem. Nelas, nas suas personagens e nos abismos, nas suas imagens e nas suas elipses, nas suas luzes e nas suas sombras – nas histórias se contêm a imaginação e a intuição, a sabedoria e o medo, o desejo e a esperança, o ciúme e o amor, os nove círculos do Inferno, cada uma das cornijas do Purgatório e todas as esferas do Paraíso. Intuir os seus significados é a própria essência do escrever. Nunca, quando uma delas nos arrepia um pêlo e nos dispomos a seguir o seu curso, as nossas mãos voltam vazias. E, quanto a mim, o privilégio de ser seu instrumento continua a ser compensação suficiente, ao fim destes quase vinte anos, pela condição de fora-de-moda.