O Peter, a Horta, o Faial. Sob o título Um Café de Todo o Mundo, Joel Neto publicou na revista Notícias Magazine, suplemento de domingo do Jornal de Notícias, um extenso texto em que ao mesmo tempo recorda as intenções e os dilemas por detrás da escrita do livro Meridiano 28, de que o Peter Café Sport é um dos cenários, e o centésimo aniversário do mítico bar de marinheiros e gin tónico da cidade da Horta, na ilha do Faial. A saga é a de como uma pequena cidade atlântica um dia se viu no centro da luta pela civilização. Já então o Peter, 100 anos de idade no Natal de 2018, era a sua sala de visitas…
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«Foi o António Bulcão quem primeiro insistiu na urgência de eu dar atenção à história do Cabo Submarino. A verdade é que não me apercebi logo do milagre que se ocultava nas suas palavras. “Tens de escrever um livro sobre a Horta do tempo dos cabos submarinos”, disse-me ele. E, como acontecia cada vez mais vezes de há um tempo àquela parte, passei à frente.
Vinha de publicar um romance que, pura e simplesmente, mudara a minha vida. Talvez se pudesse dizer que não fora uma surpresa. Três anos antes, depois de vinte a viver em Lisboa e quinze a trabalhar como jornalista em alguns dos mais importantes jornais e revistas nacionais (Jornal de Notícias e Notícias Magazine incluídos), mudara-me de volta para a minha freguesia natal na ilha Terceira, nos Açores, arrastando comigo uma mulher lisboeta, uma carreira profissional auspiciosa e todo um modo de vida urbano – tudo, em primeiro lugar, para poder escrever esse livro.
Mas fora, realmente, uma surpresa, toda aquela transformação.
Com quase uma dezena de volumes publicados em década e meia (e nos mais diferentes géneros), já não esperava propriamente cruzar-me com isso a que chamamos sucesso. Podia sonhar com ele. Podia empreender em sonhos – até em planos mirabolantes – para gozá-lo em pleno. O facto é que poder continuar a escrever, como sonhara na infância, já seria um privilégio, pelo que o melhor era cuidar em primeiro lugar do direito a publicar o livro seguinte.
Talvez por isso o êxito de Arquipélago – desse romance falamos –, com lugar nos tops de vendas durante semanas, sucessivas edições impressas e tocante aprovação crítica, me tenha deixado tão atónito. Só mais tarde, ao olhar para trás, me apercebi de que, bem vistas as coisas, tinha estado a ensaiar aquele livro – trabalhando personagens, acumulando recursos, exercitando métodos – em todos os outros que escrevera, mesmo os de jornalismo. Seria até natural que, enfim, tivesse chegado a algum lado.
Naquele momento, contudo, experimentei primeiro uma sensação de triunfo arrebatadora – e, acto contínuo, aquele medo avassalador a que costumamos dar o nome de peso da responsabilidade. No ano a seguir ainda publiquei o meu diário, A Vida no Campo, mas nem por isso consegui retirar pressão sobre o romance seguinte. Uma vez, qualquer um era capaz. Conseguiria eu fazê-lo de novo? E fazê-lo bem, para aclamação de leitores e críticos?
Era a dúvida que impendia sobre o que tinha de escrever agora. Na prática, o meu segundo romance – o monstro que devora tantos escritores.
Foi então que, como se intuíssem o meu dilema, leitores e amigos começaram a rodear-me de sugestões. “Porque é que não escreve um livro sobre o meu avô?”, dizia um. “Fui emigrante em Inglaterra e gostava de contar-lhe a minha história”, contrapunha outro. Pessoas admiráveis, histórias mirabolantes, paraísos artificiais – apareceu de tudo. E eu ouvia, anotava, pensava, encolhia os ombros. Às vezes achava que podia vir dali um caminho, outras que ele teria sempre de vir algures de dentro de mim. De maneira que, mesmo quando o Bulcão me disse: “Tens de escrever um livro sobre a Horta do tempo dos cabos submarinos”, passei à frente.
Uma aventura tecnológica
É claro: o António Bulcão não era (nem é) “apenas” um leitor. O António Bulcão é um escritor, um músico, um advogado, um professor. A sua experiência de vida não tem limites, e ademais trata-se de um amigo. Gostara genuinamente do Arquipélago, sem essas rivalidades tontas que os escritores cultivam. Gostara tanto dele que, inclusive, me propunha uma história sobre a sua própria cidade, e que bem poderia guardar para si mesmo.
Mas eu limitei-me a registar que, afinal, se dizia “os cabos submarinos” (porque havia vários), e não “o Cabo Submarino”. Só isso já demonstrava o quanto eu ignorava sobre a matéria – logo eu, que julgava saber tudo o que havia a saber sobre os Açores –, e segui caminho.
Mas, não muito tempo depois, o Manuel Menezes Martins, que trabalhou durante décadas na Base das Lajes e hoje é um dos homens de cultura mais activos da Terceira, fez-me a sua sugestão: “Tens de escrever um livro sobre a vida dos ingleses e dos americanos nos Açores.” E, poucos dias passados, o Pedro Miguel Pereira, que nem sequer é açoriano (embora, por outro lado, o seja mais do que muitos de nós), acrescentou a dele: “Tens de escrever um livro sobre o papel dos Açores nas guerras mundiais.”
Só então me detive. Se havia um lugar de onde os meus livros pareciam vir, constituído aquele primeiro corpus do meu trajecto, era do momento em que várias histórias e personagens começavam a formar um padrão e, devagar, esse padrão passava a acompanhar-me ao longo do dia. Pois ali estava um padrão.
Todos eles – o Bulcão, o Menezes Martins, o Pedro – me falavam, de alguma forma, de uma mesma coisa: os Açores dos anos 1940. Portanto, fui ver do que, no fundo, poderiam estar a falar-me – a começar pela Horta dos cabos e do Bulcão.
E o que encontrei, para minha infinita surpresa, foi um tempo tão auspicioso que talvez não houvesse paralelo para ele em toda a história deste arquipélago – nem sequer na Angra do Heroísmo dos séculos XVI e XVII, base avançada da Expansão portuguesa, porto de escala das grandes navegações europeias e cemitério de gentes e navios com lugar cativo na história mundial.
Em primeiro lugar era preciso, realmente, considerar os cabos submarinos. Desde o início do século XIX que diferentes nações se esforçavam por conseguir levar a telegrafia aos mais variados pontos do globo, mas durante as primeiras décadas os esforços tinham esbarrado em todo o tipo de condicionantes técnicas. Os navios transportavam cabos de diferentes construções, desenrolando-os no fundo do mar, só que nem o mar era suficientemente conhecido, nem os cabos suficientemente resistentes. Quando um navio, enfim, chegava ao destino, acabando de desenrolar mais um cabo, já as correntes, a ondulação ou mesmo a fauna marinha o tinham destruído na outra extremidade.
Foi preciso melhorar a cartografia do Atlântico e foi preciso também aprender a conjugar o cobre e a guta-percha. Logrou-o a Coroa britânica, e agora havia que encontrar pontos de amarração que permitissem a distribuição da rede a partir da Europa. Portugal tinha várias geografias estratégicas e, como velho aliado, concessionou a Londres a exploração telegráfica do seu território. A primeira estação foi montada em Carcavelos. No Atlântico, foram escolhidos dois portos: o Mindelo, ideal para a distribuição para África e a América do Sul; e a Horta, cidade então com 15 mil habitantes, e cuja extraordinária baía natural, navegável e protegida pelo Monte da Guia (a Sul), a Espalamaca (a Norte) e a ilha do Pico (a Sudeste), prometia uma distribuição segura para Oeste, em direcção à América.
Uma sociedade fascinante
As primeiras companhias inglesas chegaram ainda no século XIX. Entretanto, e por subconcessão britânica, instalaram-se também uma companhia alemã e outra americana. Foram todas reunidas na Trinity House, um enorme edifício onde a Coroa poderia controlar a respectiva actividade, e ao qual reportavam também delegados de outras companhias ainda (uma italiana, uma francesa…) que trocavam serviços com as empresas efectivamente ali sediadas. E, quando em 1939 a Alemanha tomou Danzig, fazendo rebentar a II Guerra Mundial, toda essa gente foi surpreendida a viver em paz.
Eram centenas de pessoas (telegrafistas, engenheiros, mecânicos), muitas delas jovens e todas com um nível de vida francamente superior à média nos Açores e em Portugal.
Distribuídas por colónias de arquitectura própria, dançavam o foxtrot nas sociedades recreativas, jogavam ténis pelas quadras que eles próprios instalavam na cidade e empreendiam em passeios, piqueniques e tardes de praia que enchiam a ilha de alegria. Ao pé da Lisboa sombria e triste da Primeira República e (sobretudo) do salazarismo, a Horta era então uma urbe cosmopolita e moderna, onde as mulheres podiam fumar, usar calças e até rir em público.
E, como se não pudesse evitá-lo, toda essa gente decidiu continuar a viver em paz e folia apesar de, a Leste e a Norte, no continente europeu e nas ilhas britânicas, os seus povos – até os seus familiares – estarem agora a matar-se uns aos outros.
A harmonia durou até 1943, altura em que, vista a entrada dos EUA na Guerra e a agora provável derrota do Eixo, Salazar, num gesto de sobrevivência, abandonou a neutralidade germanófila (chamemos-lhe assim) e cedeu espaços nas ilhas para bases aliadas. Mas nem nessa altura os alemães da Deutsche-Atlantische Telegraphengesellschaft, ou DAT, foram ostracizados. Alguns “inimigos” acorreram mesmo à sua evacuação, proporcionando-lhes uma despedida condigna. O que talvez sugerisse que, apesar dos desmandos da geopolítica, da humilhação de Versailles e da própria loucura de Hitler, aqueles povos podiam ter continuado em paz. Isso interessava-me.
Entretanto, porém, não eram só os cabos submarinos.
A Pan American ganhava a dianteira na corrida à aviação civil transcontinental, e agora paravam na Horta também os célebres Clippers, os Boeing 314 pejados de salas de estar, restaurantes e beliches, e a que se dava o cognome de “Palácios dos Ares”. Provenientes de Flushing Bay e destinados a Paris, faziam escala para reabastecimentos nas Bermudas, mais tarde em Lisboa e, pelo meio, beneficiando das mesmas condições que os telegrafistas tinham procurado, na ilha do Faial. Vinham carregados de estrelas do cinema e da música, de estadistas e de campeões de boxe.
E muitos deles, ao amararem na baía, saíam para desentorpecer as pernas, beber um gin “do bom” e dar alguns autógrafos.
O actor Tyrone Power ou a dançarina Mitzi Mayfair, a Imperatriz Zita ou o Arquiduque Otto de Habsburgo, o magnata do petróleo Max Thornburg ou a pianista Alma de Seyfried – todos eles estiveram no Faial. Como estiveram Charles Lindbergh, Italo Balbo, Saint-Exupéry e outros aviadores famosos, no papel de aventureiros ou até de combatentes. E como estiveram outras superestrelas mundiais de todas as origens e destinos ainda.
No coração do mundo
Portanto, não falávamos apenas de comunicação. Durante a II Guerra Mundial, já os nossos avós (mesmo os nossos pais, muitas vezes) eram vivos, lutava-se na Horta por conseguir fazer chegar ao outro lado do mar meia dúzia de palavras por minuto, enquanto hoje, um simples telemóvel podia guardar 256 GB de informação e transferir a Biblioteca de Alexandria no tempo de um cigarro. Mas a globalização ali em jogo ultrapassava esse esforço. As pessoas começavam a viajar pelo mundo de uma forma prática, rápida e massificável. E, por outro lado, aquelas de que falamos, naquele momento, ainda eram só os famosos – os primeiros verdadeiros famosos de um século a que poderíamos chamar “o século da fama”, se na verdade este não o fosse também.
Também isso me interessava.
E, finalmente, ainda havia a guerra: na fase final, a instalação na baía da Horta de uma base naval americana, que transformou a cidade num pátio dos fundos para marinheiros musculados e espiões de diferentes origens; e na fase inicial, durante a chamada Batalha do Atlântico – aquela em que, como veio a confessar nas suas memórias, Churchill temeu a vitória de Adolf Hitler, só traído pela megalomania de avançar para Moscovo –, a circulação de navios britânicos e submarinos alemães.
O abastecimento em regime de contrabando era permanente, mas chegara a haver até combates em frente à cidade. Num célebre recontro, um navio inglês afundara o U-581 com recurso a cargas de profundidade, e muitos locais – doutores e caçadores de baleias, comerciantes de madeira e fruta vindos da ilha do Pico, camponeses acabados de chegar das freguesias para pagar a enfiteuse e todos os demais tipos de personagens de que Nemésio se havia servido em Mau Tempo no Canal – tinham-se reunido na doca, sentando-se como num anfiteatro, para ficarem ali a assistir à batalha e a escolher os seus heróis e vilões.
Adversários de guerra em paz, vindos de recolher autógrafos entre as estrelas de cinema e de dançar toda a noite o foxtrot na Sociedade Amor da Pátria, sentados agora a assistir à II Guerra Mundial e à luta pela civilização. Como quem vê a um filme – “E não me contes o fim, para não me estragares a surpresa”… A propósito de quantos lugares do mundo se poderia contar essa incrível história que, afinal, estava dentro de todos nós – essa magnífica metáfora sobre a guerra e a paz, o triunfo da comunicação e as origens da revolução digital, a celebridade e a puerilidade?
Pois era o que eu me propunha fazer em Meridiano 28, o livro que lancei na última Primavera: a história de uma amizade entre um jovem luso-alemão e outro inglês nessa cidade-fogo do Portugal tristonho dos anos 1940 – o conto de um amor intergeracional que se espraiou pelas ilhas dos Açores, a biografia de um lisboeta relutante que as visitou em busca da sua herança germânica e a viagem que todas essas personagens e demandas empreenderam pelo mundo, de Friburgo a Praga, de Bristol a Nova Iorque e a Porto Alegre, no extremo-sul do globo terrestre. Seria um romance histórico no sentido antigo – o da colocação da história ao serviço da literatura, e não o contrário –, e (muito importante) teria mulheres mais fortes do que as de Arquipélago.
E nenhum outro local se adequava tão bem ao encontro dessas personagens e histórias como o Peter Café Sport, esse que agora faz cem anos. Porque não há melhor testemunha de toda essa incrível saga que não só os portugueses ignoram, como muitos açorianos ignoram também. Ali beberam gin os telegrafistas, as estrelas e os navegadores. Ali haviam de ir dar, já depois do Vulcão dos Capelinhos, sucessivas gerações de visitantes de todas as nacionalidades, graus de reconhecimento público e motivações de viagem. E, quando chegou a nossa altura de lançar Meridiano 28 e apresentá-lo por todo o país, de Norte a Sul e da Madeira aos Açores, talvez nenhuma outra sessão tenha podido ser tão encantadora e autêntica como essa que promovemos no Peter, com o meu amigo José Henrique Azevedo como anfitrião.
Era um livro que voltava a casa. Como eu próprio voltara um dia.»