Mais de 300 escritores de língua portuguesa, incluindo alguns dos maiores vultos das literaturas portuguesa, brasileira e dos países africanos de expressão lusófona, assinaram a Carta Aberta dos Escritores de Língua Portuguesa Contra o Racismo, a Xenofobia e o Populismo e Em Defesa de Uma Cultura e de uma Sociedade Livres, Plurais e Inclusivas, da autoria de Joel Neto e Ana Margarida de Carvalho. O texto foi oficialmente alojado no site da Fundação José Saramago, que apoiou a iniciativa. José Eduardo Agualusa, Mia Couto ou Chico Buarque, além dos portugueses Hélia Correia, Lídia Jorge, Mário Cláudio ou João de Melo, foram apenas alguns dos escritores de renome internacional que juntaram o nome à lista de subscritores.
Carta aberta dos escritores de língua portuguesa
contra o racismo, a xenofobia e o populismo
e em defesa de uma cultura e de uma sociedade livres, plurais e inclusivas.
Nós, escritores portugueses e de língua portuguesa, estamos, por ofício, cientes do poder da palavra. E do poder da sua omissão também. Conhecemos os custos de dar palco ao que, em circunstâncias normais, não mereceria uma nota de rodapé. Pondo em cena aquilo que não é de cena – aquilo que é, e não só etimologicamente, obsceno.
Preferimos correr esse risco face às circunstâncias vividas em Portugal, que consideramos graves e inquietantes, nos domínios do racismo, do populismo, da xenofobia, da homofobia, das emoções induzidas, da confusão destas com ideias e, em geral, de tudo aquilo que de mais repugnante pode emergir de uma sociedade em crise e em estado de medo.
Temos de reagir antes que seja tarde. E usar as palavras contra o insidioso ataque à democracia, ao multiculturalismo, à justiça social, à tolerância, à inclusão, à igualdade entre géneros, à liberdade de expressão e ao debate aberto.
Exigimos compromissos políticos que detenham a escalada do populismo, da violência, da xenofobia – de todos esses reflexos primitivos, retrógrados, obscurantistas, destrutivos e abjectos. Tais são as nossas grandes riquezas: a diversidade e a tolerância. Como o expressa a língua portuguesa, feita de aglutinação, inclusão e aceitação da diferença.
Quem gosta de Portugal jamais diz «Vão!», antes diz «Venham!».
É preciso tomar consciência de que as ameaças que ora rastejam propiciam uma quebra irreparável dos valores humanistas, da solidariedade e do mútuo apoio – valores laborais e de igualdade de direitos constitucionais à saúde, à educação, ao emprego, à justiça, à cultura.
Cultura e literatura não florescem nestes tempos sufocantes, em que a terrível crise humanitária dos refugiados, nos deploráveis campos às portas da Europa, e a ameaça ecológica e ambiental, à escala planetária, são banalizadas nos noticiários. E ao que vem de trás ainda se junta o que se seguirá à pandemia da covid-19: o alastramento do desemprego e da pobreza, pasto fértil para demagogias, teses anti-imigração, racismos e extremas-direitas.
Não podemos olhar para o lado nem continuar calados, sob pena de emudecermos. Por tudo isto, nós, escritores portugueses e de língua portuguesa, assumimos o compromisso de jamais participarmos em eventos, conferências e/ou festivais conotados – seja de que maneira for – com ideias que colidam com os princípios da tolerância e da dignidade humana.
A todos os cidadãos portugueses, à sociedade civil, aos professores das escolas e das universidades, apelamos a que se distanciem de projectos e movimentos antidemocráticos e ajudem na consciencialização das novas gerações para a urgência dos valores humanistas e para os riscos das extremas-direitas; aos órgãos de justiça, que investiguem, processem e condenem os interesses económico-financeiros que se servem dos novos populismos para, a coberto da raiva e da intolerância, acentuarem as desigualdades de que sempre se sustentaram; às autoridades policiais e aos seus agentes, que se abstenham de condescender com movimentos e acções promotores da exclusão, da discriminação e da violência; à comunicação social, que assuma com veemência o seu papel de contraditório e de defesa da verdade; aos partidos políticos, que sejam capazes de recuperar os princípios esquecidos no decurso do jogo partidário de vocação eleitoral; ao Presidente da República, à Assembleia da República e ao Governo, que exerçam um escrutínio rigoroso da constitucionalidade e assegurem que o fascismo não passará.
Na certeza de que, como sempre nos mostrou a História, quem adormece em democracia acorda em ditadura,
os escritores de língua portuguesa: (os abaixo assinados)
Foto (com a devida vénia) da autoria de © Rui Gaudêncio.
Uma carta urgente nos tempos que correm, por incrível e absurdo que possa parecer. Estão de parabéns pela iniciativa e pela forma inteligente, cuidadosa e escorreita com que os temas foram abordados. Citando a frase que se encontra na Carta Aberta – “Cultura e literatura não florescem nestes tempos sufocantes, em que a terrível crise humanitária dos refugiados, nos deploráveis campos às portas da Europa, e a ameaça ecológica e ambiental, à escala planetária, são banalizadas nos noticiários.” – encontro nela uma síntese admirável da abordagem feita. Parabéns