Versão radiofónica: aqui
Há dias, num jantar cá em casa, um amigo mais jovem confessou a sua inquietação por me ver usar a palavra “fixe”. Os amigos para que temos cozinhado são cada vez mais jovens, o que nos traz porta dentro a alegria da inocência (e talvez do vigor) e também nos faz, às vezes, sentirmo-nos mais velhos do que somos.
Era o que estava em causa naquela inquietação. Como podia eu usar o termo “fixe”, se venho de um tempo tão anterior a ele?
Tentei explicar-lhe que a palavra já se usava na minha adolescência – mesmo aqui, na Terceira, onde crescemos. Só depois me ocorreu que, da geração dele para a minha, a palavra morreu, esteve morta e renasceu. De início significava “porreiro”, e era um adjectivo. Agora traduz o inglês “cool”, e é um substantivo – mais fixe ainda.
O próprio “fixe” deixou de ser fixe e voltou como “um” fixe. O que dantes era apenas feitio tornou-se identidade. O que era traço de carácter transformou-se em categoria social. Não são as coisas que são fixes: são as pessoas. Nem sequer são fixes: são “umas” fixes. E não se revelam circunstancialmente umas fixes: “provam-se” umas fixes, estética e eticamente umas fixes.
“Nasceram” umas fixes. Está-lhes no sangue – serem umas fixes é mais forte do que elas.
E nisto andamos, dias inteiros: urgentes de comprovar como somos uns fixes. Exige imensa atenção.
O que é que ninguém está a dizer nos debates da TV e nos fóruns radiofónicos? O que fará de mim um fixe mesmo fixe, agora: censurar a incivilidade de Trump ou aplaudir a solidez da economia americana e mundial, com francas vantagens para a segurança?
E o Brexit, posso deplorar? E o Museu de Salazar – devo aproveitá-lo para me reafirmar irredutivelmente democrata, um progressista, ou dizer-me agora assertivamente saudosista, mesmo um conservador?
O que me distinguirá melhor da carneirada?
Em suma, o que é que ninguém está a dizer e ainda se pode dizer? Como poderia eu elogiar Bolsonaro e continuar fixe? E defender o Acordo Ortográfico? E a energia nuclear? E os GMO? Como poderia “atacar” as àrvores da Amazónia e, no momento em que os outros começarem a atacá-las também, lembrarem-se de fui eu quem a atacou primeiro?
Onde está esse delicado ponto de intercepção entre o eloquente e o “seguro”, que fará de nós não só uns fixes, mas os maiores fixes do dia? Pois é aí que queremos estar. É “isso” que queremos dizer. E, portanto, o melhor, já agora, será que seja isso que pensamos também.
Eis o país que vejo daqui, à distância dos grandes centros urbanos. Um país em que deixámos de dizer o que pensamos para pensar o que o que dizemos. Um país em que “passamos” a pensar o que dissemos. Um país entediado, e por isso mais perigoso do que aquilo que nos prometem os rankings do Global Peace Index.
Eu não quero ser um fixe. Vivi no Bairro Alto e agora vivo numa freguesia interior de uma ilha remota. Sei os nomes dos vizinhos, sei os nomes dos animais e sei os nomes das árvores. Conheço pobres e ricos, vejo as crianças crescerem e tornarem-se adultas – sei os nomes delas também.
Compro móveis no Ikea. Escrevo livros de estrutura clássica. Às vezes ponho um caldo Knorr na caldeirada – não sou um fixe.
E também não sou inteiramente livre. Tentei acreditar na velha máxima de Clemenceau segundo a qual “Se aos 20 anos não fores de esquerda não tens coração e aos 30 não fores de direita não tens cabeça”, mas a idade mostrou-me que “se aos 40 não fosse de esquerda novamente, então não tinha esperança”.
Sou de esquerda, mas sou moderado – menos fixe era impossível. E ainda me manietam mais coisas. Os afectos. As necessidades criativas. O apego à terra. Uma constipação.
Mas aqui, ao menos, não preciso de ser um fixe. E talvez tenha ganhado alguma noção das proporções. Ainda não encontrei definição melhor para a palavra cultura.
Prometo tentar que seja esse o fio da minha meada.
Como em torno do conceito de uma palavra se pode escrever uma crónica tão lúcida, pertinente, actual. Enfim, muito fixe.
Muito obrigado, Isabel. É o melhor que se pode ouvir. Um abraço!
Querido Joel,
Cabe-nos a nós, leitores, os agradecimentos. Adorei o registo escorreito, claro, transparente escolhido ou não para grafar reflexões sobre assuntos diversificados do quotidiano. E interrompi a leitura aqui e ali para dar cumprimento à mensagem implícita – pensar! O que precisamos é de pensar, nem que seja sobre o mais simples da vida.
Quando te surgir uma melhor definição de “cultura” (será que é mesma necessário?), cá estaremos para a desmontar e analisar. Para reter!
Beijinho amigo.
PS. Ocorreu-me. Fixe e cultural era saber by heart o percurso Guarda-Aveiro. 😂😂
Ainda tenho pesadelos com essa viagem. 🙂 Um abraço, Isabel – e muito obrigado!