Quarta-feira, 21 de Junho
Abriram os metrosíderos, abriram em todo o seu esplendor, e agora já se pode dizer que começou o Verão. A roupa seca nos estendais. No rosto dos vizinhos há uma paz. O povo prepara as Sanjoaninas.
Tudo se torna possível quando abrem os metrosíderos, e talvez não se possa dizer nada de melhor sobre o que quer que seja.
Já lhes chamámos árvores de fogo, mas os léxicos andam a encolher. Gostava de recuperar esse nome, árvore de fogo, tão bonito e exultante. Mas, antes ainda, gostava de percorrer a Internet a apagar os textos onde se escreve que, em lugares como a região do Cabo ou as ilhas dos Açores, os metrosíderos são invasores.
(Metrosíderos, não: árvores de fogo.)
Invasores só porque não são aqui? Nenhum de nós é daqui. Recua-se meia dúzia de gerações, às vezes apenas uma ou duas, e já ninguém é destas ilhas. As árvores de fogo estão cá há muito tempo, vindas dos Antípodas nos barcos que fizeram do mundo mundo. Esta terra é pelo menos tão delas como nossa. E os mantos infinitos como aquele do Farol da Serreta não são invasão: são povoamento.
Ainda há umas semanas andei no meio das árvores de fogo, com o Araújo, a tirar fotografias. Catei as primeiras agulhas do ano, esparsas ainda. Postei-me junto aos troncos antigos, ouvindo murmurar a terra. Subi à estrada regional e deixei-me a ver aquela multidão, de braços entrelaçados como cantores rurais, contendo o cântico da fertilidade e da vida como quem faz contas à hora de entoá-lo.
Ouço-o agora um pouco por todo o lado, ao cântico dos metrosíderos: nas amplas extensões das zonas costeiras como nas mais pequenas praças de Angra. Sento-me a olhá-los dos muros dos cerrados e dos velhos bancos de jardim. Junto na mão uma porção das suas agulhas.
Vermelhas. Jubilosas. Narrando da vida e da morte como o sangue dos toiros nos pastos e a bagacina que os atravessa, por entre as neblinas de Junho, a caminho do próximo cone vulcânico.
É Verão, e tornaram a ser os metrosíderos a dizer-mo. Nunca o amarei o suficiente.
Sábado, 24 de Junho
Na quinta-feira desci até Angra, a ver a rainha. É das atracções das Sanjoaninas que menos me seduzem: uma garota em cima de um carro alegórico, dizendo adeus ao povo nostálgico de uma certa ideia de monarquia, ou talvez de coluna social. Mas este ano a garota era aqui da Terra Chã, filha da Cristina Ficher e sobrinha do Rómulo. Poucas vezes a rainha vem de famílias modestas e não sei se alguma vez tinha vindo da Terra Chã. Portanto, fui ver a rainha.
Estava bonita.
E, porém, havia uma tristeza no ar. Perguntei ao John.
– Eh, pá, não sei… – reflectiu ele. – Matou-se aquele rapaz. Era uma pessoa muito popular.
A cidade e a ilha haviam acordado nessa manhã com a notícia do suicídio do T.
Era um homem jovem ainda, bem parecido, cheio de actividades. Andava nos rallies, e por todo o lado se encontravam fotos suas no meio dos amigos. Andava no basquetebol, e por todo o lado se ouviam elogios à sua dedicação, aos serviços que vinha prestando à modalidade – ao desporto, ao Lusitânia.
Trabalhava com miúdos. Trabalhava com o futuro. Apesar disso, na madrugada de quinta-feira desistiu do seu.
– O que o terá levado a tal coisa? – arrisquei.
Não procurava o mexerico. Não pretendia saber porquê: tentava perceber como via uma cidade a partida, por vontade própria, de um dos seus filhos queridos. O suicídio manter-se- ia o único problema filosófico realmente sério, como dizia Camus – a última coisa que eu esperava era resolver esse enigma.
– Eh, pá, não sei… – respondeu um, sem arriscar agora.
– Quem é que pode dizer? – perguntou-se outro, e baixou os olhos.
– São coisas muito complicadas… – suspirou outro ainda.
De maneira que o cortejo da rainha não foi como de costume: percorreu a Sé no meio do jogo de cores habitual, mas havia no ar um silêncio. As mães de família alinhavam-se nos passeios sem conversar. Os homens deixavam perder-se o olhar no macadame. A filarmónica caminhava devagar.
Havia menos gente do que noutros anos.
Desci do Alto das Covas à Praça Velha, através dos corredores laterais dantes apinhados, e tive vontade de chorar. Não eram só de tristeza, as lágrimas que eu segurava: eram também de emoção, quase de alegria – de alegria por viver num lugar onde a morte de um homem ainda faz a diferença. Mas também eram de tristeza, apesar de eu ter conhecido tão mal o T., e esse foi o maior mistério.
Ontem voltei à cidade, a ver as marchas. Postei-me ao canto da Rua dos Minhas Terras, como sempre, e pus-me a aplaudir.
Dancei. Fiz brindes. Mas, sobretudo, outros faziam-no também. A cidade toda o fazia – a cidade repleta, agora. Homens de barba rija apanhavam os refrães ao longe e punham-se a cantar. Senhoras delicadas erguiam copos de cerveja. As marchantes desfilavam num trejeito de sevilhana, e dos seus olhos desprendia-se um tal contentamento, uma tal bem-aventurança, que não podia ser menos do que a própria felicidade de estarem vivas.
Fez-me lembrar New Orleans, com aqueles seus funerais de que se sai dançando, numa celebração da vida que é também o supremo sinal de respeito pelos mortos. Senti orgulho na minha cidade e admiração pela sua sabedoria. Creio que o T. também teria sentido.