Uma sala repleta acolheu, na Casa dos Açores em Lisboa, a entrega a Joel Neto do Grande Prémio de Literatura Biográfica da Associação Portuguesa de Escritores/Câmara Municipal de Castelo Branco. Delfina Porto, líder da instituição anfitriã, e José Manuel Mendes, congénere da APE, presidiram à sessão. O filólogo e professor catedrático Artur Anselmo, que presidiu ao júri, justificou a atribuição do galardão.
«Um livro admirável, maravilhoso, que não consigo ler sem me comover», disse Artur Anselmo. «Uma escrita correntia, que ao tempo tem o seu automatismo – e podia perfeitamente levar Joel Neto a integrar um grupo surrealista – e se serve de uma naturalidade extraordinária. Fascinou-me, a sua simplicidade, como sempre me fascina nos outros aquilo que eu não seria capaz de fazer e, ao mesmo tempo, me acrescenta algo sobre mim próprio.»
«Se me permitem uma inconfidência, foi uma decisão tomada por unanimidade e em tempo recorde. Não houve discussão», acrescentou José Manuel Mendes. «É um livro a todos os títulos singular, só possível a um grande narrador. Tem uma escrita particularmente criativa e, em simultâneo, a presença irradiante de uma intimidade que se preserva e não se deixa confundir com a sociabilidade e a solidariedade que traz em si mesma.»
Joel Neto agradeceu o galardão e reconheceu acalentar desde sempre o sonho não confessado de integrar o palmarés dos Prémios APE, «para mim» – explicou – «os mais prestigiantes prémios portugueses». No discurso de aceitação, explicou que o regresso aos Açores, em 2012, lhe trouxe uma série de novos recursos temáticos e estilísticos, mas acima de tudo o privilégio de «viver entre os pobres», com tudo o que daí resultou em termos ideológicos e artísticos.
Confira o vídeo da cerimónia aqui. Leia abaixo, na íntegra, o discurso de aceitação de Joel Neto:
Segunda oportunidade
© Joel Neto
Discurso de aceitação do Grande Prémio de Literatura Biográfica da Associação Portuguesa de Escritores/CM Castelo Branco 2019, atribuído ao primeiro volume do diário A Vida no Campo.
Casa dos Açores em Lisboa, Rua dos Navegantes à Lapa, 10 de Dezembro de 2019
No dia em que voltei a aterrar nos Açores, desta vez com a intenção de ficar, não saberia dizer o preço de um quilo de arroz. Vinte anos antes, enfiara os pertences da juventude num grande saco camuflado que a minha mãe mandara comprar na base aérea americana e partira (mais do que em busca de sonhos) ansioso por sair dali para fora. Entretanto, e durante duas décadas, fizera de tudo: entrevistara chefes de estado, conhecera dezenas de países, ganhara muito dinheiro (e gastara-o sem piedade). Fora todas as personagens: o marido romântico, o chefe prepotente, o candidato a escritor. Cometera todos os erros: conduzira alcoolizado, dormira com mulheres que não eram a minha, envolvera-me em debates sobre cujo assunto não possuía um mínimo de conhecimento. Em suma, crescera em público, como dizia a canção. Vivera. Vivera até em bom estilo, se considerássemos o contexto de onde vinha: pobre, rural, protestante, ilhéu – sucessivas ilhas dentro de outras ilhas. Proporcionara-mo Lisboa, a experiência e a aprendizagem. Nunca poderei agradecer-lhe tudo o que me deu. Mas a verdade é que voltava, ao fim de todo esse tempo, e não sabia o preço de um quilo de arroz.
Nem como se assentava um tijolo a prumo. Nem em que mês floriam as camélias. Nem que se podia atear uma fogueira sem uma acendalha. Nem o que os pobres comiam ao jantar.
O que os pobres comem ao jantar. Agora que olho para trás, à distância de sete anos que eram para ter sido quatro e desde então deixámos de questionar-nos sobre quantos serão, pode bem ter sido essa a maior de todas as instruções: o que os pobres comem ao jantar. Apesar de tudo o mais que adquiri, creio que nada me mudou tanto, emocional e intelectualmente, como a possibilidade de viver entre os pobres (na verdade, de voltar a viver entre os pobres). Porque os Açores são uma terra pobre. Ilhas deslumbrantes, com um resto singular de autenticidade e um povo tão caloroso como talvez já não existam muitos, lideram paradoxalmente todas as estatísticas nacionais de subdesenvolvimento humano – repito: todas as estatísticas nacionais de subdesenvolvimento humano – e estão, de muitos pontos de vista, a caminho de lado nenhum. E, quando eu tentei imaginar-me na pele de uma criança nascida sem meios num lugar assim, belo e desprovido de horizontes, fui obrigado a rever tudo aquilo em que acreditava sobre o papel do Estado, sobre a política partidária, sobre a própria ideologia – e, evidentemente, sobre as funções da arte.
Dezenas de milhar de pessoas vivem nos bairros sociais dos Açores. À volta desses bairros sociais, tantos deles comparáveis a favelas do antigamente chamado terceiro-mundo, são hoje construídos novos bairros sociais, de qualidade um pouco mais digna, com a dupla função de premiar os residentes eleitoralmente mais bem-comportados e esconder a miséria do bairro original. Lá dentro, como a toda a volta, grassam como em nenhum outro local do país o analfabetismo, o insucesso e o abandono escolar; a violência doméstica, o abuso sexual e a gravidez precoce; o alcoolismo, a obesidade infantil e a diabetes; a mortalidade infantil e o suicídio jovem, a pobreza persistente e a dependência do Rendimento Social de Inserção. De que maneira uma criança nascida num lugar assim, ademais sem um exemplo de autonomia – muito menos de brio, seja de que natureza for – até três gerações antes da sua, poderia alguma vez aspirar a outra coisa senão à miséria, quanto mais a algum género de liberdade?
Isto era algo para que a alienação em que eu vivia em Lisboa – a bolha, como hoje se diz – não me tinha preparado devidamente. Porque depois dos números vieram as pessoas. Depois das pessoas vieram os seus nomes. E depois dos seus nomes vieram as suas casas, as suas rotinas, o que comiam ao jantar.
Partíramos de Lisboa, eu e a Catarina, com um intuito que era também o de um desvio estratégico. Tínhamos uma vida divertida, mas cara. Vivíamos nos bairros tradicionais, em casas dispendiosas e com hábitos dispendiosos também. Entretanto, as indústrias de que subsistíamos, os livros e os jornais – a Catarina como tradutora, eu como cronista, cada vez menos jornalista e eterno candidato a escritor – haviam entrado em falência. O futuro adivinhava-se sombrio, ademais para duas pessoas que sempre tinham prezado a ideia de independência. Estávamos tristes, estávamos gordos e estávamos, provavelmente, deprimidos. Tínhamos deixado de fazer planos, como se nos escasseasse agora o desígnio.
Não era coisa pouca, porque a mais nada nos comprometêramos com a mesma convicção no dia em que nos casáramos: haveríamos de fazer planos até ao fim. E, então, contámos a nós próprios a mais bela história. Lisboa era uma cidade maravilhosa – Lisboa é uma cidade maravilhosa –, mas talvez tivesse deixado de ser para nós. Já mudando-nos para os Açores, onde de qualquer modo vínhamos passando cada vez mais tempo, poderíamos ter uma vida mais barata, consequentemente mais livre, seguramente mais saudável, indiscutivelmente mais bela e talvez até mais serena, contanto o demónio não se contivesse afinal dentro de nós.
E, além disso, habitando a velha casa de família que adquirira anos antes, eu poderia não só emular os gestos dos meus antepassados, mas fazer uma espécie de diagnóstico diferencial da infância, separando o que de facto acontecera daquilo que a minha mente efabulara para preencher os espaços em branco. Talvez até – e isto disse-o a Catarina, num dos gestos de maior generosidade de que fui alvo até hoje – escrever o romance, o romance grande, quem sabe o grande romance, que há tanto prometia a mim próprio tentar escrever.
E não me cabe a mim determinar se esse romance aconteceu realmente. Até porque a minha grande preocupação é sempre o livro seguinte: ao pé do que pretendo que o livro seguinte seja, todos os livros anteriores se resumem a meras sombras. Ouso acreditar, por um instante, que o facto de estar aqui hoje, nesta casa, sob os auspícios destas instituições, na vossa presença, signifique alguma coisa. De resto, creio poder dizer com suficiente convicção de que, de facto, tenho hoje uma vida mais barata, mais livre, mais saudável, mais bela e mais serena do que alguma vez tive. Já se é também uma vida mais inteligente, como às vezes, imodestamente, tento persuadir-me de que é, devo-o em primeiro lugar aos pobres e ao facto de ter voltado a viver entre os pobres. A eles devo tudo o que hoje sei sobre a escassez de recursos, sobre o bem supremo da partilha, sobre a urgência da esperança e – sim – sobre quanto custa um quilo de arroz.
Dos diferentes géneros. Das diferentes marcas. Nos diferentes supermercados e mercearias.
E eu podia ter aprendido tudo isso – ou, pelo menos, boa parte disso – na cidade. Mas aprendi-o no campo. Na Terra Chã, uma freguesia rural que foi rica e empobreceu. Na Terceira, a ilha das festas, das touradas à corda e de uma certa alucinação colectiva em que, estranhamente, reside grande parte do seu encanto. Nos Açores, as melhores ilhas do mundo segundo não sei quantos rankings para os quais o mundo é turismo e economia – da macro, evidentemente –, e, no entanto, persistem o lugar mais pobre do país e, em muitos aspectos, da Europa.
Dois cuidados, estou convencido, foram fundamentais para podermos hoje celebrar essa experiência, tanto eu como a Catarina. O primeiro foi o esforço de manter um pé dentro e outro fora, como aliás é próprio de quem tem dois lugares. Por um lado, queríamos pertencer ao campo, mas sem deixar atrás a mundividência que trazíamos da cidade. Por outro, queríamos integrar tudo o que o campo pudesse acrescentar-nos, mas sem nos contaminarmos pelo que, nele, pudesse puxar-nos para baixo.
E o segundo cuidado foi educarmo-nos de um modo a que nunca nos passasse pela cabeça a ideia de que poderíamos industriar o campo, mostrar-lhe o caminho ou sequer elucidá-lo sobre a sabedoria que se continha nos seus modos de vida sem que, no fundo, ele próprio tivesse consciência disso. Conquanto conseguíssemos manter a humildade, evitando a condescendência, podia bem ser até que nos mantivéssemos a salvo daquilo com que tantos urbanos transferidos para a ruralidade – e conhecíamos várias histórias trágicas – acabavam por decepcionar-se, frustrados nas suas expectativas missionárias, auto-redentoras e até moralistas que podiam perfeitamente ter ido dar às patranhas do coaching e da programação neurolinguística, e só por acaso tinham ido dar ao (e cito) “espaço rural”.
Que o campo seja também cruel, mesquinho e invejoso, como nos ensinaram Torga e tantos outros, tornou-se assim quase acessório. Ou instrumental: a espécie produzindo o seu espectáculo diário, para nosso enriquecimento e talvez deleite. Também no campo a distância entre a nobreza da raiva e a abjecção do ódio é, muitas vezes, ínfima. Também no campo ignorância e arrogância se abraçam uma à outra como poderosos ímanes – como uma espécie de yin e yang do Mal. Mas, por outro lado, há menos espaço para esse misto de fanatismo ideológico, ligeireza histérica e autoritarismo da virtude a que, tantas vezes, o debate intelectual se cinge hoje. Visto do campo, o cinismo urbano reduz-se àquilo que na verdade é: uma caricatura de si mesmo. E, no lugar da solidão, está frequentemente a intimidade. Que permanece uma intimidade, mesmo no desespero – se calhar até sobretudo no desespero.
Na verdade, nada me interessa, hoje, se não for íntimo. Por isso passei a dividir as terras entre aquelas onde se pode ver as estrelas e aquelas onde não se pode. E, se em algum momento o merceeiro da aldeia se engana na minha conta da semana, eu pago na mesma e passo a colocar mais atenção no que compro – sem confrontações inúteis.
Regressar aos Açores privou-nos de muita coisa, a mim e à Catarina. Tirou-nos um cartaz diário de cinema, por exemplo. Impediu-nos de ouvir a TSF em qualquer lado. Desinformou-nos sobre os novos restaurantes e as novas lojas e as novas tendências – reduziu-nos o teatro, os concertos, a presença dos amigos de sempre, a companhia de boa parte da família. Deixou-nos completamente – quase completamente – sem livrarias.
Mas deu-nos perspectiva e noção das proporções: o Portugal que se vê do meio do Oceano, o mundo que se vê à distância, tem contornos tão francamente mais nítidos que, a mim, chega a parecer-me aberrante que alguma vez tenha pensado tanta coisa que pensei. Deu-nos a paisagem: há algo na renovação da paisagem, nos seus ciclos incertos e inexoráveis, que permanece acima de tudo o mais. E deu-nos os nossos cães, o velho Melville, a sábia Jasmim, o buliçoso Gaugin: o que aprendemos com eles não chega a caber nestas páginas – sobre a força da natureza, sobre o poder do cuidado, sobre a origem dos afectos, sobre o significado do tempo, sobre a estupidez de dois terços das dicotomias contemporâneas.
E, entretanto, fomos readquirindo o mais que nos faltava, que o século XXI tem expedientes técnicos como nenhum outro teve. Também a ele devemos este privilégio, na verdade: ao progresso.
Hoje, com a minha mulher e os meus cães, com o meu jardim e o meu pomar, com os meus livros e os meus leitores, com os meus amigos – hoje, sou um homem feliz. Quando é que eu teria usado em público essas palavras, “um homem feliz”, nos tempos de Lisboa? Mesmo que fosse realmente feliz: que vergonha teria sido usar tais termos – que falta de gosto, que irresponsabilidade…
Além do mais, desde quando a felicidade produziu literatura? Talvez nunca, com efeito. Acontece que literatura é memória. E eu conservo a memória da infelicidade e da solidão. Conservo as impressões, conservo as histórias, conservo as personagens, conservo os lugares. Sobre eles escrevo também, à distância no espaço e no tempo. A distância tornou-se o mais negligenciado dos bens, mas nunca para um escritor. Inclusive – se calhar até principalmente – para um escritor a quem continua a acalentar a ideia de que o esperam noutro lugar (como um dia, tornando a partir, o acalentará a ideia de que o esperaram no lugar actual).
O regresso a casa. Agora que torno a pensar nele, talvez já nem seja bem um tema, e sim uma linguagem. Não creio que tenha esgotado ainda a minha relação com ela. Mas, entretanto, celebro este prémio porque é meu e também porque é dos Açores. Porque distingue um livro escrito por um açoriano, sobre os Açores, nos Açores. Há mais de duas décadas que a literatura das minhas ilhas, que tantos prosadores e poetas e ensaístas deram a Portugal e à lusofonia, não tinham o privilégio de integrar o palmarés destes galardões. Por isso, se me permitem, levo este comigo e partilho-o com os meus camaradas e amigos, vivos e mortos, a quem ficámos a dever (ou continuamos a dever) reconhecimentos como este que agora me dão a mim.
Romancistas como Daniel de Sá, Álamo Oliveira ou Madalena Férin; poetas como Emanuel Félix, Urbano Bettencourt ou Emanuel Jorge Botelho; diaristas como Fernando Aires, ensaístas como Vamberto Freitas e tantos, tantos outros criadores (alguns muito mais velhos, outros até já mais jovens do que eu) de que Antero, Nemésio, Natália, João de Melo ou Onésimo Teotónio Almeida ficaram – aliás, com justiça – como os rostos mais visíveis: a todos eles devemos tanto a definição de uma identidade açoriana como o contributo das ilhas para o inestimável acervo da literatura portuguesa.
Partilho este prémio com eles e partilho-o com os outros também, os não escritores: todos os açorianos, e em particular os homens e mulheres que desfilam nos dois volumes deste diário que aqui é distinguido. Os que desfilam ainda vivos, os que desfilam já mortos e os que, tendo desfilado vivos, passaram entretanto de uma categoria à outra, como ainda há dias aconteceu com Hermínio Machado, o taxista mais asseado que alguma vez conheci – o sportinguista fervoroso que a si mesmo se alcunhou de “Alvalade”.
A todos eles devo o regresso à alegria. Creio que era Montaigne quem dizia não ser capaz de fazer o que quer que fosse sem alegria. Sei-o bem, hoje: sem alegria, até levantar-me da cama, pela manhã, seria um suplício, como chegou a sê-lo. O trabalho está aí, para demonstrá-lo: cinco livros nos últimos cinco anos, um sexto a sair (este a meias com a Catarina), contos em todo o tipo de publicações, centenas de crónicas com diferentes géneros de periodicidade, uma peça de teatro, um filme (ambos a meias com a Catarina também).
Falo dos números, da quantidade, porque tudo o mais é com o leitor, não comigo. A mim, interessa-me sobretudo esta constatação: nunca trabalhei tanto como hoje. Quanto ao resto, já se sabe, não há sucesso: apenas graus de fracasso. Mas até por isso continuamos a investir contra o vento. Porque não saberíamos viver de outra maneira – em busca da possibilidade do Bem.
Disso falam os dois volumes deste A Vida no Campo, espero. Da possibilidade do Bem. Da redescoberta da alegria, embora também da saudade dos que estão agora distantes, na cidade ainda amada. De quanto custa um quilo de arroz e do que os pobres continuam a precisar de fazer para assegurá-lo. Dos nomes desses pobres. Dos nomes das árvores que lhes sobreviverão. E de como tudo isso me permitiu voltar a fazer planos, hoje e – estou agora convicto – até o último dia da minha vida.
Quem não acredite em segundas oportunidades, pois aí tem. Talvez de mais nada fale este diário, afinal: de uma segunda oportunidade.