ESTROBOSCÓPIO ACIDENTAL (12 de Junho de 2020)
1.
Reconsiderar a História à luz da constatação de que boa parte da riqueza do Ocidente assentou (e assenta) na escravatura, na espoliação dos recursos do até há pouco chamado Terceiro Mundo e no racismo em geral daria trabalho.
E implica o risco de nos sem heróis, clássicos ou modernos. Até – já se sabe – sem Churchill, que não tinha (por exemplo) pelos indianos um apreço assim tão maior do que Hitler tinha pelos judeus, e que aliás cultivava simpatias eugénicas.
Reconsiderar a História à luz da constatação de que boa parte da riqueza do Ocidente assentou (e assenta) na escravatura, na espoliação dos recursos do até há pouco tempo chamado Terceiro Mundo e no racismo em geral daria trabalho, implicaria o risco de nos sem heróis e seria triste, porque de repente teríamos de constatar que, afinal, não sabemos nada – pelo menos eu não sei nada.
Mas isso não quer dizer que não seja o que há a fazer.
2.
Não o digo a propósito dos derrubes – nem das pichagens, nem sequer dos encaixotamentos – de estatuária. Discutir a estatuária, em Portugal como no mundo, é toda uma outra questão (basta ver que numa das praças mais emblemáticas do nosso país, ao topo da avenida a que chamámos “da Liberdade”, se ergue um ditador) e, ao mesmo tempo, apenas parte desta.
Deixar que o debate do racismo se circunscreva à estatuária é cair no mesmo género de armadilha dos que, ao hashtag #blacklivesmatter, contrapuseram #alllivesmatter. É evidente que todas as vidas importam, mas algumas importaram sempre e outras não importaram nada durante demasiado tempo.
Ainda hoje importam menos.
3.
“Reconsiderar a História” não é mudar o que aconteceu. Ao historiador cabe: a) apurar o que aconteceu, b) perceber como o que aconteceu foi entendido quando aconteceu e c) ajudar-nos a formular o modo como entendemos o que aconteceu. “Reconsiderar a História” é mudar o modo que vemos o que aconteceu.
E o que acontece, inevitavelmente. E o que acontecerá.
De resto, escrevemos não para dizer o que pensamos, mas para perceber o que pensamos. Isso vale para a historiografia como vale para esta crónica, para a literatura como para a própria narrativa que aqueles que não escrevem constroem interiormente – com ou sem sinais exteriores – sobre como vêem o mundo.
E, entretanto, vão-se tomando decisões. Nós não somos o que pensamos: somos o que decidimos pensar.
4.
O racismo, e aliás a xenofobia, e naturalmente a escravatura – nenhum deles é um exclusivo de uma região do mundo, de um momento histórico ou sequer de uma raça. Todos nós somos racistas, cada um até ao seu próprio ponto. Mas alguns persistem em tentar educar-se.
O recrudescimento da extrema-direita é resultado de uma crescente demissão dessas duas tarefas: a de tomar decisões e a de nos educarmos.
Há nele um tanto de ódio, um tanto de medo, um tanto de tédio, mas também uma valente preguiça. Também em resultado deles nos tribalizamos tanto, e a propósito de tanta coisa: ser contra ou a favor é uma bela maneira de entregarmos aos outros que são contra ou a favor o esforço de pensarem por nós.
Disso se alimenta o populismo. E o pior é que já passámos o ponto em que podíamos contê-lo sem radicalizarmos posições também. É assim nas guerras e é assim nas revoluções.
5.
Há uma verdade no vírus com que lutamos. Está expressa na velocidade da pandemia, na derrocada da economia, nas reacções da natureza. No limite, até no facto de desatarmos a encontrar homicidas que procurávamos há anos, como os de Madeleine McCann ou Olof Palme.
Foi tudo isso junto que transformou George Floyd num símbolo. Não era um santo e também não era um demónio. Foi apenas mais um cidadão de uma minoria étnica morto às mãos da polícia de um estado ultraconservador.
Mas morto num momento em que se prepara a eleição do homem mais poderoso do mundo nos próximos quatro anos. Em que se pode ajustar contas com o erro cometido da última vez. Em que se vive a primeira grande pandemia em várias gerações. E em que nos bate à porta a maior recessão em outras tantas.
Filmou-o uma garota com um telemóvel fabricado por crianças do Bangladesh ou outro país vizinho – um telefone igual ao meu, provavelmente. E, em poucos minutos, todo o mundo o tinha visto.
Foi a tempestade perfeita. E não foi causa: foi consequência.
De resto, todas as revoluções têm excessos. Disputa-se uma nova ordem mundial, e fraco sinal daria o Bem, neste momento, se não mostrasse um pouco de até onde é capaz de ir.
Deixar que o debate do racismo se circunscreva à estatuária é cair no mesmo género de armadilha dos que, ao hashtag #blacklivesmatter, contrapuseram #alllivesmatter. É evidente que todas as vidas importam, mas algumas importaram sempre e outras não importaram nada durante demasiado tempo.