Lugar dos Dois Caminhos, 12 de Janeiro
Se eu assediei? Sim, assediei. Agora ia a dizer algo como “Qualquer homem da minha idade assediou, mesmo sem o saber”, mas isso seria reduzir a minha culpa. Eu assediei, embora não tenha tirado disso maior partido do que a repulsa das minhas vítimas – se calhar até a condescendência, o que não é melhor -, e mereço olhar para o debate em curso e sentir vergonha.
É claro: também seduzi (ou tentei seduzir). Seduzi mulheres de vários tipos, por razões grandes e minúsculas (como querer sentir-me amado, no fundo a mesma por que se escreve livros), e em bastos casos com o mesmo pecúlio verificado das vezes em que assediei.
Seduzi até homens, pensando bem, embora com outros fitos e instrumentos. Mas também por isso sei a diferença entre uma coisa e outra.
Tornei-me editor de um jornal nacional pouco depois de fazer 23 anos, o que é extremamente cedo para os rapazes de hoje, mas já era cedo para os do meu tempo. Vivia no jornal e tinha uma equipa cheia de homens de barba rija e duas raparigas jovens e bonitas. E andei de volta delas.
Não creio que, salvo os delírios da solidão e as conversas de balneário, alguma vez tenha pensado verdadeiramente em levar alguma delas para a cama (ou não mais do que à próxima mulher, pelo menos). Mas andei de volta delas. Ora, tendo um poder minúsculo, tinha um poder a que a posição hierárquica e os sonhos de triunfar as obrigavam a dar significado. E, sobretudo – disto lembro-me com nitidez -, elas não queriam que eu andasse de volta delas.
Nem eu nem outros, já agora. Éramos vários, o que aliás só agrava o crime. E, além disso, quem tinha o poder, ademais minúsculo, era eu. Não se deve descurar nunca um pequeno poder: frequentemente, exige maiores cometimentos ainda para se validar.
Eu também assediei. Não sei se há uma hashtag para isso. Assediei titubeantemente, talvez. Mas os casos graves de assédio começam assim.
Isto foi há vinte anos, faz agora. Entretanto, creio que nunca mais assediei. Ia escrever “até porque nunca mais tive poder”, mas isso também não é exacto. Toda a gente tem alguma espécie de poder. Pode ser um poder profissional, um poder doméstico, um poder social, até um poder psicológico: toda a gente, em qualquer momento, tem alguma espécie de poder e pode assediar.
Mas não foi agora, nem sequer com a primeira vez que se falou da lei do piropo, que eu me envergonhei de como andei de volta daquelas duas raparigas. E também não é por as saber hoje casadas, (aparentemente) felizes e (tanto quanto sei) realizadas profissionalmente, talvez até – aqui já é a minha esperança a falar – sem memória desse tempo em que as assediei, que deixo de me lembrar da minha lição.
Portanto, leio este manifesto das intelectuais francesas e não lhe encontro mais méritos do que na cavalgada justiceira de tantas e tantos que, do outro lado do espectro, identificam assédio no que não chega sequer a ser sedução – apenas pela necessidade de se indignarem, pela urgência de reclamarem uma causa maior, pelo desejo de se sentirem investidos de algum tipo de superioridade moral.
A verdade é esta: o assédio existe. É perpetrado mais regularmente por homens. Tange quase sempre a imparidade – com que às vezes se intercepta -, mas é um organismo independente dela. E, além de exigir enquadramento legal, com fiscalização a contento, exige educação.
A começar na primeira infância. A começar pelo trabalho das mães, tantas vezes as primeiras fomentadoras do machismo – que é outro organismo ainda, mas que se intercepta quase sempre com a imparidade e muitas vezes com o assédio – dos seus rebentos varões.
Percebo o que pretenderam as intelectuais francesas: há uma tradição a defender. Uma cultura. Com o puritanismo sentado no trono de Deus, cuja morte realmente ainda estamos longe de sublimar, proteger o que resta de humano nesta sociedade pede, às vezes, um certo radicalismo. Não é surpreendente se for a França a liderar essa batalha, pois já liderou outras.
Para mais, está em causa (também) um negócio. Lembram-se daquela anedota em que dois franceses conversam sobre sexo? Diz um: “O sexo é uma coisa um bocado suja, não é?” E diz o outro: “Se for bem feito.” Anedotas como esta estão um pouco por toda a cultura popular, do cinema à literatura, da televisão à música e à própria moda: francês é pouco asseado, muito romântico, encantadoramente bruto.
Mas, de facto, não é disso que se trata. Trata-se de abuso. Trata-se de poder, como ninguém se cansa de dizer desde há dias. A confusão é perigosa, e não tenho a certeza de como se explica.
Talvez as ditas cem intelectuais nunca tenham estado numa posição de subalternidade, o que já será bom sinal sobre a França. Não tenho a certeza de que conseguíssemos encontrar em Portugal cem mulheres de destaque em iguais circunstâncias. Ou talvez estejam apenas a brincar às dicotomias, o que já as aproxima perigosamente das moralistas de Facebook.
Se eu tivesse de reduzir a um só os problemas do tempo em que vivemos, provavelmente reduzia-os a esse: as dicotomias. Os clubismos. Mas eu sou homem, ocidental, educado, saudável e financeiramente independente. Que saberei, de facto, sobre isto, a não ser que assediei e me safei com o meu crime?