Versão radiofónica: aqui
Na semana passada a minha sobrinha de oito anos confessou-me já estar com saudades da escola. Revirávamos a garagem, à procura de um velho djembé que eu trazia da juventude, e que ela queria experimentar. Anda na música, como o irmão mais velho, e agora sonha fazer-se a percussionista oficial dele.
Desde esse dia que ninguém tem descanso aqui em volta. O djembé ecoa com tal inclemência sobre o silêncio da freguesia que parece que estamos a ser invadidos por guerreiros maasai. Mas o que ficou comigo foi aquele suspiro dela, revolvia eu nos tarecos: «Credo, estou farta das férias!»
Nós nunca ficávamos fartos das férias. Já hoje, os miúdos têm saudades da escola. E não uma nostalgia de cheiros a apara-lápis e a borrachas novas – saudades mesmo.
Não devemos estranhá-lo. A escola tornou-se um lugar divertido, com áreas curriculares, projectos e visitas de estudo. Mesmo na primária, há informática, inglês, até natação. Celebram-se o São Martinho e o Halloween. Fazem-se Dias da Alimentação e da Saúde, Feiras do Livro e das Profissões – há palestras de escritores, ilustradores, polícias, bombeiros.
E depois ainda vem o ATL.
Portanto, não é só aos pais que o regresso às aulas traz um alívio. Aos miúdos também – até nós, suspeito, teríamos gostado de uma escola assim.
No meu tempo, regressar à escola era uma chatice. Eu tinha passado o Verão a subir às árvores com os meus primos, e a última coisa que queria era voltar àquela sala fria, onde a professora Angeolinda ia debitando matéria até, ela própria, adormecer na sua cadeira rotativa.
Para mais, havia lá um daqueles bullies retorcidos, que apontava sempre a mim no jogo do mata e, quando brincávamos aos toiros, gostava de me espetar o galho nas aduelas. Conhecíamo-lo, não sem alguma propriedade, por ‘Veneno’. De modo que, ao aproximar-se o regresso à escola, eu pendurava uma bola de borracha no fio da roupa e ficava ali aos socos, como o Rocky, porque era este ano que, por fim, ia fazer frente ao Veneno.
Dias depois, já estava a levar cornadas de novo. E, de repente, o melhor momento do meu dia ainda eram as aulas da professora Angeolinda, de que eu ia dando baixa, uma a uma, como um presidiário em solitária.
Hoje não é assim. Continua a haver bullying, mas os professores tentam estar atentos. E a matéria é ensinada sem ninguém dar por isso. Há participação, trabalhos de grupo, workshops. Os miúdos são menos desenrascados, e nenhum consegue dedicar a um objecto mais atenção do que a de uma barata. Dizemos que são demasiado protegidos, embora eu não consiga imaginar desprotecção maior. Mas, de qualquer maneira, há sempre nova estratégia de animação – o que é preciso é animar.
Enfim, talvez eu também tivesse gostado de ser protegido assim. Tinha levado menos cornadas do ‘Veneno’.
Mas pergunto-me se, no meio de tanta actividade, as crianças ainda terão espaço para se aborrecerem. Há dias denegri aqui o tédio. O tédio é um perigo, como sempre são os instrumentos importantes. Também é dele, muitas vezes, que vem a abstracção. E é do tédio, mais vezes ainda, que vem a criatividade.
Livros, quadros, sinfonias, sistemas filosóficos – alguns dos maiores feitos da humanidade nasceram do tédio.
Eu, enquanto esmurrava aquela bola com que treinava para dar cabo do ‘Veneno’, inventava histórias sobre pugilistas. Estava nas aulas da professora Angeolinda e laborava em planos para publicar livros, fazer jornais, escrever peças de teatro.
Disso vivo, hoje.
E as crianças de agora, terão tempo para se aborrecerem? Para exercerem a abstracção? Terão tempo para se entediarem tanto que não lhes reste senão praticarem a criatividade – até que a criatividade se torne, afinal, a sua ferramenta, capaz de as distinguir do burocrata ao lado e até, se preciso for, de as fazer enfrentarem o seu veneno?
Ou, pelo contrário, poderemos nós, com esta escola toda, estar a criar crianças maravilhosas condenadas a tornarem-se adultos lamentáveis?