Versão radiofónica: aqui
Realmente, eu não sou ninguém para falar. Só tenho feito tolices.
Criado numa igreja protestante, ultraconservadora, tive a sorte de ter em casa pais paradoxalmente de centro-esquerda. Admiravam Soares, votavam no Partido Socialista, e se algum destes ganhava íamos dar uma volta de carro com uma bandeira de Portugal.
Mas havia naquilo um clubismo – éramos do PS como do Sporting –, de modo que cedo começaram as minhas derivas. Na adolescência, pus-me à esquerda do clã, como era próprio da idade. Depois, tomei uma série de decisões estúpidas.
Chegado à faculdade, era preciso descobrir Lisboa – só quis namorar, jogar matrecos, ir ao cinema. A seguir, quando comecei a trabalhar e a escrever, a esquerda urbana já estava a tornar-se aquilo que hoje é: redonda, moralista, egoísta. Cansava-me, porque era tudo estética, e então decidi tornar-me seu adversário: provocá-la-ia a cada oportunidade, ridicularizá-la-ia.
Entretanto, e para piorar, o regime dito socialista dos Açores, deteriorado por 12 (e depois 16, e 20, e 24) anos de poder, tinha como única alternativa o também dito Partido Social-Democrata. E eu uni as minhas parcas forças a este – romântica e (de novo) estupidamente.
Claro que quem lesse os meus romances e diários sabia que eu não podia ser um conservador, nem sequer um liberal. Só que o PSD, salvo excepções de vago alcance, sempre foi, aqui nos Açores, ainda menos social-democrata. E, sobretudo, a ameaça neofascista, que apenas com responsabilidade e estratégia se poderia conter, em lado nenhum era abstracta: era latente, mas concreta.
Portanto, eu não sou, de facto, ninguém para falar: fiz tudo errado. Mas quem foi realmente vigilante – mesmo na esquerda irredutível? Tanto tempo a brincar às tribos, quando muito discutindo o sistema, sempre sem perceber que era o regime que estava em risco – serviu do quê?
A extrema-direita está aí, na forma de um velhaco determinado a explorar cada oportunidade de levar o eleitor a pensar que pensa aquilo que o ódio o impele a pensar. Não há ideias, apenas marketing, e portanto cabe lá tudo. Muitos apaniguados nem sabem o que se defende. Há dias, na TV, uma actriz tonta, que fez do Facebook e das atoardas chauvinistas negócio, confessou admiração por André Ventura porque – e cito – “é preciso melhorar o Serviço Nacional de Saúde”.
Isto é: o mesmo com este quis acabar…
Entretanto, o velhaco vai testando (e alargando) os limites, como ainda há dias fez via Joacine Katar Moreira. Mas a pretexto do quê, agora? De manobra não menos populista da deputada, à qual a institucionalização da anterior esquerda diletante ofereceu todas as atenções.
Vamos a ver: a maior diferença entre Ventura e Joacine, os dois deputados mais nocivos da história da nossa democracia, é que o narcisismo vai destruí-la a ela e fazê-lo triunfar a ele. De resto, nenhum está preocupado com os problemas prementes do país. Ambos se alimentam do ódio, do seu ou do dos eleitores, e a nenhum desagrada a ideia de crescer a cavalo do outro.
Um triste casamento entre dois farsantes carentes de atenção. Para imprestável, imprestável e meio. É ver quem grita mais alto.
Mas os danos são irreparáveis. Para já, foram-se os brandos costumes. Entretanto, nada se fará sem ter em atenção a nova dicotomia. O próprio “Chicão” vem daí: sem ela, não teria sido eleito. E, apesar de se ter definido como fronteira da democracia, também já testa limites.
Para já, urge encaixar isto: o pluripartidarismo, enquanto garante do regime, faliu. As novas autocracias, as novas ditaduras, vêm das próprias eleições.
Sim, já sei: como Hitler veio.