Lugar dos Dois Caminhos, 22 de Março
Outra personagem é o rico da aldeia. O rico da aldeia nunca é muito rico. Se for muito rico não é da aldeia, ainda que viva nela. Mesmo que se reconheça como sendo da aldeia, mesmo que seja um sentimental e deseje pertencer à aldeia, o seu mundo permanecerá indecifrável e misterioso para aqueles de quem quer fazer parte.
O rico da aldeia é apenas remediado: professor, polícia, funcionário público. Numa cidade, seria até pobre. Mas vive melhor do que a maior parte dos pobres da aldeia, às vezes porque tem mais dinheiro, outras porque tem maneiras mais polidas. E é aí que começam as suas responsabilidades.
A primeira missão do rico da aldeia é financeira. O rico da aldeia tem de ajudar a viúva pobre, contribuir para a festa do padroeiro, receber a vizinhança para uns petiscos. Às vezes não lhe custa muito. O rico da aldeia já anda a dormir com a viúva, contribui para a festa com menos do que aquilo que consegue fazer crer e, quando a vizinhança vai aos petiscos, acaba sempre por munir-se de contributos de última hora.
Os pobres costumam ser mais generosos do que os ricos, desde logo porque os bafeja o desprendimento que os levou a serem pobres. E o que importa é que não tenham de ser eles a preocupar-se com a burocracia. Isso é que é uma responsabilidade.
Preocupar-se com a burocracia é a segunda missão do rico da aldeia. Quer dizer: se no fim fizermos bem as contas, ainda terão sido os pobres a ocupar-se da burocracia: as licenças para a festa, os pedidos de patrocínio, a organização da equipa que vai limpar as ruas. Mas corra alguma coisa mal e a culpa será do rico, o que é outra responsabilidade.
Os pobres olham para o rico da aldeia e sentem-se livres de responsabilidades. Já o rico da aldeia olha para os pobres e sente-se descansado. Complementam-se, que é como deve funcionar uma aldeia.
O rico da aldeia pode não ter muito terreno, mas tem-no ordenado. Pode não ter um grande carro, mas condu-lo devagar. Uma pessoa vê passar o carro do rico da aldeia e parece-lhe que ele nem faz barulho. Há uma tal segurança de movimentos no rico da aldeia, ali ao volante do seu automóvel, que nos faz querer ter aquele automóvel também.
Às vezes o rico da aldeia é proprietário de uma excentricidade. Um campinho de futebol. Uma biblioteca. Uma piscina. Já existia no tempo do pai, quando o rico da aldeia ainda não era o rico da aldeia, mas apenas o filho do rico da aldeia, e o rico da aldeia não teria de fazer mais nada para ser o próximo rico da aldeia a não ser sobreviver até ao dia da herança.
A única diferença é que, no tempo do pai do rico da aldeia, que esse sim era o verdadeiro rico da aldeia, os vizinhos gostavam de ir nadar àquela piscina. Houvesse o verdadeiro rico da aldeia aberto inscrições, teria havido até filas.
Acontece que o verdadeiro rico da aldeia sabia que essa mania igualitarista da ordem de chegada só teria apressado o momento em que a aldeia escolheria outro rico para o seu lugar. Às vezes ia lá a casa um pobre ou outro, num sinal de magnanimidade que o verdadeiro rico da aldeia sabia dar. Mas quem estava lá sempre caído eram aqueles em cujo companhia os pobres da aldeia mais gostariam de poder nadar, e era aí que se sustentava o estatuto do anfitrião.
Talvez tenha sido esse o erro do rico da aldeia, filho do verdadeiro rico da aldeia. O rico da aldeia estava na tropa quando se deu o 25 de Abril. Viu cantar o Zeca Afonso. Escreveu poesias.
Aprendeu a tocar o bombardino. Hoje, de cada vez que algum recém-chegado se instala na aldeia, um desses professores ou polícias ou funcionários que vêm de fora, a primeira coisa que o rico da aldeia faz é convidá-lo a vir dar um mergulho à sua piscina. O recém-chegado nunca vai. Vai um pobre ou outro, quando o rei faz anos, e de resto não aparece mais do que a filha do merceeiro, a amiga da filha do merceeiro e a amiga da amiga da filha do merceeiro – até que o rico da aldeia vai dar um mergulho à sua piscina e as garotas, distraídas com os telemóveis e os banhos de sol, já nem sabem quem é aquele tipo de bigode ali a nadar.
Eu não sou o rico da minha aldeia. Nem sequer há aldeias nos Açores: há freguesias. Acho que o meu avô, sendo pobre, chegou a ser o rico da freguesia, pelo menos deste lado de cima.
Dava trabalho a várias pessoas. Eu nunca quis tal papel, embora um dia uma vizinha me tenha dito: “A vida para ti é fácil, deves ganhar algumas duas vezes o que o meu marido ganha” – e me tenha comovido bastante com isso, porque às vezes os pobres das freguesias são tão pobres que nem sabem quanto dinheiro é muito dinheiro.
Só que o rico da freguesia, como o rico da aldeia, gosta de ser o rico da freguesia. Dessa seiva se alimenta, e devastador seria ter um dia de despojar-se do seu trono, que o pai, onde quer que esteja, ainda era capaz de ver. Pela minha parte, nunca quis mais do que liberdade. Acho que é por isso que, passados quase seis anos, ainda acho que mais vale ser o remediado da aldeia do que o pelintra da cidade.
Seis anos esta Primavera. Ainda é tudo como se fosse novo.