Versão radiofónica: aqui
Estou sentado num café da cidade, coisa rara, quando vejo aquele coala pela primeira vez. O bicho atravessa uma estrada, fugido do fogo – apenas para descobrir que o fogo o espera do outro lado também.
É uma retrospectiva das imagens do ano, e há alguns minutos que a minha atenção se dispersara pela sala, atenta a nada: rosto cansados, ruídos confusos de diferentes televisores, dois empregados zangados um com o outro. Quando vejo aquele coala, estaco.
Na mesa ao lado, três garotos judiciosos – digo garotos: gente de trinta e poucos anos – detêm-se um instante na imagem e logo encontram maneira de retomar o debate de antes. Tinham estado a discutir Greta Thunberg, naquele jeito enfático com que se reduzem as ideias, os factos e as próprias pessoas a um “a favor” ou a um “contra”, e logo volta a garota mais bonita:
– Estás a ver, Rui? Qualquer dia nem coalas há…
E ri-se para ele, numa cumplicidade não totalmente desprovida de triunfo.
Entretanto, o coala chegou ao outro lado da estrada, deparou com o fogo e continuou a avançar. Há nos seus modos como que uma conformação, porque talvez também os coalas saibam quando chegou o seu momento, como se diz que sabem alguns homens.
Isto os garotos já não vêem. Discutem a jovem Thunberg, o tema mais animado da sua tarde. Não sabem bem as conclusões da cimeira que a trouxe a sul, não sabem sequer totalmente o que se discutiu lá. Sabem que a miúda viajou de barco, que vem faltando às aulas há semanas, que a apertaram numa conferência de imprensa.
– E o Marcelo não a recebeu… – deplora a garota mais gordinha.
– Mas as influencers, recebeu!– reforça a amiga.
– Olha, o golo do Cervi – tenta desconversar o Rui, chamando as atenções para outro televisor.
Mas já as raparigas estão as duas a olhar para um mesmo telemóvel, aos risinhos, escrutinando os novos desenvolvimentos de um assunto anterior ainda, de antes de o Rui chegar.
E eu fico a pensar naquele diálogo de há dias com o meu amigo Luís, a propósito de um artigo que ele lera e me enviara. Sobre esta incapacidade de concentração a que a tecnologia nos votou. Sobre as crianças à mesa do restaurante, assistindo ao YouTube no tablet para que os pais possam comer em paz. Sobre o modo que nenhum de nós consegue já ler dez páginas de um livro sem a ansiedade de ir ao telemóvel conferir o Facebook – sobre a urgência de sermos baratas tontas, multi-task, e de por isso já não nos conseguirmos concentrar numa actividade a cem por cento.
Estamos a ler e temos de estar de estar a ouvir música. E a conferir o Messenger. E a atender os telefonemas.
– Enfim, li o artigo na diagonal – confessara o Luís. – Se é muito grande, leio na diagonal, só tirar as coisas-chave.
E a verdade é que, agora que penso nisso, também eu arquivei o link nas pastas dos artigos a ler e não cheguei a lê-lo, porque, tal como o Luís, sou vítima da mesma doença daqueles três garotos, a não ser quando me imponho regras.
Mas, quando torno a olhar em volta, reparo que não fui o único a quem o coala aflito prendeu. Várias pessoas continuam com os olhos no televisor original – inclusive depois de as imagens terem passado dos fogos aos icebergues e destes às enxurradas.
Repito para mim próprio: “Porque era ‘um coala’, não ‘os coalas’. Porque era um só – porque era ‘aquele’ coala.”
E torno a ter a certeza de que tudo o que sabemos sobre como chegar ao coração do outro foi descoberto há muito, há séculos, há milénios, e que a própria menina Thunberg, parecendo um fenómeno moderníssimo, é afinal bastante antiga. Da própria natureza da literatura, no fundo – e tudo o mais é ruído.