Uma edição especial do suplemento 1864 (Diário Notícias), dedicada aos conceitos de margens e de centro, permitiu a Joel Neto sistematizar algumas das ideias por que se tem batido ao longo dos últimos anos no contexto da autonomia e da sociedade açorianas.
A colaboração resultou num breve ensaio político com uma conclusão inevitável: «Reforma da Autonomia de modo a suprimir a fiscalização do país, extinção do cargo de Representante da República incluída, não. Nós não conseguimos escrutinar-nos a nós próprios. Mais provavelmente, precisamos antes do regresso do Ministro da República. Precisamos de Lisboa.»
Texto completo abaixo:
A ultraperiferia que eu conheço
© Joel Neto, Diário de Notícias, 23 de Fevereiro de 2019
Subsidiodependência, índices de desenvolvimento humano desastrosos e toda uma gama de expedientes eleitorais ao serviço dos partidos no poder. Os Açores não precisam de reforçar a Automonia: precisam de que Lisboa volte a estar presente
Não vale a pena determos a conversa à primeira tentação de cinismo. Mesmo que um país, uma federação ou uma união (como a Europeia) fosse centralista o suficiente para fazer orelhas moucas às necessidades das suas regiões ultraperiféricas, restaria a parte dos seus interesses que essas regiões protegem. Uma região ultraperiférica pode constituir, e constitui frequentemente, um elemento de projecção de poder territorial, um centro gravitacional de interesses geoestratégicos e uma fonte de recursos físicos e humanos essenciais à solidez de um estado. Investir na supressão das carências que a geografia e/ou a demografia lhe impõe(m), bem como na mitigação das assimetrias entre ela e os grandes centros, é sempre bom negócio, mesmo que não fosse em primeiro lugar um dever.
O problema é quando esses mecanismos de compensação não são suficientemente bem aplicados para fomentarem uma efectiva autonomização das pessoas, das empresas e dos próprios órgãos de administração regional e local, mas antes usados de um modo a eternizar dependências que, servindo para a conservação de uma elite no poder, impedem também o desenvolvimento humano, económico e crítico do território em causa. No caso dos Açores, a região ultraperiférica que conheço melhor, isso acontece há demasiados anos. Nem sequer se trata desta ou daquela elite. Aconteceu nos tempos em que o PSD era maioritário, reduziu-se durante os primeiros anos de liderança do PS e acentuou-se em definitivo com a perpetuação deste na governação.
Muito pouco é aquilo que, nos Açores de hoje, não serve de expediente eleitoral. Os resultados desse modelo estão patentes em todo o tipo de recolha estatística, têm-se (em muitos casos) agravado e, na ausência de escrutínio interno, permanecem sem qualquer escrutínio externo. Historicamente, o esforço de Alberto João Jardim para se comportar como um palhaço fez concentrar todas as atenções sobre a Madeira, libertando os Açores para o papel de paraíso pátrio. Têm condições para isso: são belos, habitados por gentes hospitaleiras e polvilhados de tradições cultivadas com gosto e devoção. Mas no interior dos seus limites vive-se a antecâmara de uma tragédia humana, se é que ela não está já em curso.
Ainda no final de 2018 uma compilação PorData, da responsabilidade da Fundação Francisco Manuel dos Santos, deixava a nu evidências com que nos temos esforçado por não lidar. Nos Açores, a esperança média de vida fica mais de três anos abaixo da média nacional. Nos Açores, a taxa de abandono escolar precoce é mais do dobro (do dobro, repito) da taxa portuguesa, o que leva a que a percentagem de cidadãos de idade superior a 15 anos sem o ensino secundário supere em nove pontos a média nacional. Inevitavelmente, os números do subsídio de desemprego equivalem a 150% dos do território português. E o usufruto do rendimento social de inserção é pior ainda: 3,2% em Portugal, 11,6% (mais do triplo, que fique claro) no arquipélago.
Pode parecer uma vantagem, viver-se de subvenções e subsídios, mas não é. Em regra, estamos a falar de pessoas que subsistem com menos de 200 euros/mês, valores ao nível de países em vias de desenvolvimento. Curiosamente, há mais juventude nas ilhas. Fazem-se mais compras através de terminais multibanco. Há até mais computadores. Entretanto, as pessoas abstêm-se muito mais nas eleições para a Presidência da República do que no resto do país (quase 18% mais), muito mais nas eleições para a Assembleia da República (quase 15% mais), mas não tão mais assim do que acontece na Madeira para a Assembleia Legislativa Regional (8,9% mais) e pouco mais do que se verifica na totalidade do território nacional quando se trata de autarquias (apenas 1,5% mais).
Quem prefira não ver nisto a prova de uma relação entre a pobreza e a agenda eleitoral – mesmo que por inconsciência, ou até por impotência –, estará a virar as costas a um problema que não é apenas açoriano, mas português. Até porque, entretanto, muitos outros números igualmente trágicos se juntam a esse quadro. Já alertei para eles aqui no DN. Regularmente ou em permanência, os Açores têm liderado quase todos os rankings nacionais de subdesenvolvimento humano, incluindo a violência doméstica e o abuso sexual; o incesto e a gravidez na adolescência; o analfabetismo e o insucesso escolar (que é outro problema, a juntar ao do abandono); o alcoolismo, a obesidade infantil e o suicídio jovem; o desemprego, o risco de pobreza e a pobreza persistente.
Sintomaticamente, a maior parte das vítimas está concentrada em bairros sociais, longe da vista do turista deslumbrado e do sociólogo de circunstância. Lugares onde se pode perfeitamente ouvir de uma criança, perguntando-se-lhe o que quer ser quando for grande, a resposta: “Quero viver do Rendimento.”
Na Madeira de Jardim, apesar das bolsas de pobreza, do populismo e do nepotismo endémico – que Albuquerque reduziu mas não eliminou por completo –, vive-se melhor e com outra mobilidade social. Por isso, quando hoje ouço as elites açorianas debatendo a urgência da reforma da Autonomia, incluindo a evolução para o federalismo, torço o nariz. Reforma da Autonomia de modo a impedir a acentuação das clivagens internas e a desertificação das ilhas mais pequenas, sim. Reforma da Autonomia de modo a suprimir a fiscalização do país, extinção do cargo de Representante da República incluída, não. Nós não conseguimos escrutinar-nos a nós próprios. Mais provavelmente, precisamos antes do regresso do Ministro da República. Precisamos de Lisboa.