Lugar dos Dois Caminhos, 10 de Maio
Há pouco começou a chover e só me apetecia celebrar. Tinha combinado ir dar uma corridinha com a malta e, quando saímos dos Portões de São Pedro, já tinha chovido um bocado.
Chegados ao Relvão, porém, caiu pouco menos do que uma bátega, os próprios ilhéus ao fundo desaparecendo por detrás da cortina de água, e eu fiquei tão contente com a chuva a fustigar-me o corpo, apesar de saber que ainda tínhamos de ir a correr até ao estádio e de dar sete ou oito voltas à pista, que tive vontade de me pôr a dançar.
Pensava no meu pomar. Depois de um início de Primavera repleto de chuva, como sempre acontece nestas ilhas, o tempo secou de repente. As laranjeiras murcharam. As folhas dos damasqueiros nasceram e logo secaram nas pontas. Dos maracujazeiros, e apesar dos meus esforços de rega, creio que só ficaram vivos dois ou três. Os cardeais com que eu tinha voltado a tentar ornamentar o muro do caminho, como de costume, desapareceram. Os pés de vinha que eu trouxera há dias de Trás Os Montes pareciam gaspear por água. De repente, porém, ela caía com abundância. A esperança voltava.
É claro: eu sei que nunca comerei uvas dali. Nem sequer cuidei de seleccionar as castas: parei numa loja de utensílios agrícolas e enxertos vários, à procura de uma daquelas maravilhosas cerejeiras ornamentais que flanqueiam as avenidas de Chaves, e, não encontrando as cerejeiras, acabei por trazer uns bacelos de Trincadeira e de Alvarinho que eles lá tinham. O mais provável é que não haja aqui frio suficiente nem para uns nem para outros, e mesmo forjar o calor vai ser difícil, porque não tenho basalto que chegue.
Mas o meu avô teve vinha naquele pequeno promontório atrás do castanheiro grande, e eu quis plantar lá vinha também. Como plantei duas figueiras porque ele teve uma figueira, apesar de a figueira original continuar tão estéril como sempre e de nenhum vizinho se esquecer de destinar, divertido e perplexo, as duas novas à esterilidade também. Na verdade, este pomar não é tanto um pomar como é um memorial à minha infância, um estender de braço em direcção a essa bonança que veio antes da tempestade, e é isso que eu quero que ele continue a ser.
De resto, o mínimo que se pode dizer é que tenho estado algo sensível em relação a esta terra. Depois de tudo o que trabalhámos durante o Inverno, eu, o Chico e o Fábio – até o Rúben, o Sr. Francisco e o Primo –, chega a altura de ver florir e tenho de me ausentar. Por várias semanas, desde já, e depois mais uma série de vezes ao longo do Verão. Ainda ontem estive a deixar ao Chico as instruções com que ele deve trabalhar pelo menos até Agosto: nenhum trabalho com pedra, nenhum traço de betão ou balde de tinta – agora chegou a altura de cortar, roçar, mondar e regar. E o Chico vai fazê-lo bem, evidentemente. Melhor do que eu, como sempre. Mas, ao mesmo tempo, custa-me pensar nisto tudo que fizemos, à força apenas dos braços e dos plantios oferecidos pelos amigos, e não estar agora aqui para assistir. De que cores florirão, afinal, as hortênsias, as que reproduzi eu próprio, as que me deu o Nogueira e as que veio cá trazer o Carreiro? E chegarão a florir este ano as tibouchinas, apesar dos caracóis e das semanas de seca?
E as faias da terra que fui buscar às Fontinhas, terão mesmo pegado todas, como parece? E as bânksias que me ofereceu o Emanuel? E os pessegueiros que fui comprar à Engenheira? E os diospireiros que comprei nos Biscoitos? E todas essas plantas que o Jorge Tiago germina, os jambos e os jambinhos, os abacaxis silvestres e os abacateiros, as goiabeiras e as pitangas, as macadâmias e as groselheiras e as romanzeiras e as nespereiras todas? E aquela vinha virgem que eu trouxe dos Ormondes, e que ainda não é a vinha virgem que queria, aquela minhota, mas que apesar de tudo é vinha virgem e pegou bem e não tarda está vermelha e me vai fazer um muro lindo?
E a roseira amarela, aliás? E as buganvílias? E a magnólia que a Catarina me ofereceu nos anos? Como vai crescer tudo isso na minha ausência? Como florirá cada uma delas? Para que lado as fará o vento tombar? Que necessidades terão, com que prontidão lhes acorrerá o Chico, como o receberão elas sem que eu esteja lá para lhes segurar a mão enquanto o Chico as trata e acondiciona e protege?
Têm uma vida secreta, os nossos pomares, hortas e jardins. Como se as plantas conversassem umas com as outras na nossa ausência. Como se, enquanto estamos deitados nas nossas camas, as árvores procurassem chegar-se mais perto umas das outras, para se confortarem nas suas solidões, e não encontrassem outro modo de fazê-lo senão crescendo.
É nelas que penso, agora que, por afazeres vários, tenho de obrigar-me a passar longe delas os melhores meses do ano. Nelas e nos meus cães. Mas com os meus cães é mais fácil. Para os meus cães, eu já sou Deus e até esta chuva é uma dádiva que lhes deixo. As árvores sabem mais do que isso. As árvores hão-de sobreviver-me e continuarão as suas vidas mesmo que eu não volte. Se calhar é isso que me custa.