Versão radiofónica: aqui
Ontem descemos à Fajãzinha, como sempre aos domingos. O Paulo pilotava o drone por sobre o miradouro, a cartografar a zona, e as ilhas dispersavam-se em frente, muito plácidas sob a luz nítida do Outono, como os grandes navios verdes de que falava John Updike.
Procuro o aparelho no ar, mas anda lá por baixo, ao fundo da ribanceira, em torno da fonte de água azeda que as autoridades pretendem agora abrir aos visitantes.
– Para já, são só uns varrimentos – explica o Paulo.
E eu anoto mentalmente, “varrimentos”, como sempre faço com as palavras e os significados que nunca me ocorreram.
Os cães vêm numa excitação, porque já reconheceram as rotinas, já reconheceram os lugares e tenho a impressão de que até já sabiam ser domingo, o dia do passeio grande. Pode-se enganar um cão, mas nunca quanto ao tempo – eles são os donos do relógio, dizia Kundera (até do calendário).
Então, descemos a bagacina, o mar acompanhando-nos pela direita, para lá da borda e das copas dos metrosíderos e da escarpa. A Graciosa vê-se hoje como nunca – parece-me que até as casinhas do Carapacho se lhe desenham na silhueta. São Jorge repousa como um dragão adormecido – e, por detrás dele, o pico do Pico, o Piquinho, numa majestade a que o diminutivo não faz justiça.
Serpenteamos com a estrada, os machos atrelados, a Jasmim comandando o seu rebanho. Ladeiam-nos agora conteiras e faias do norte. Mas entrevêem-se já os cerrados, debruçados sobre o mar, e sobre estes incide o mesmo sol que brilha há dias – os cães puxando pelas trelas, porque sabem que daqui a pouco estarão livres, correndo através deles.
– Onde estão as vacas? – procura a Catarina.
Mas não tem razões para se preocupar: estão confinadas ao estábulo, ruminando junto à manjedoura – hoje nem elas nos condicionam.
Ficamos quase uma hora, a ver brincar os bichos. Ocorre-me a minha nova pluméria, arfando por água entre as mimosas, mas passo à frente. Paira sobre as pastagens um silêncio doce, a que os pássaros só acrescentam bonomia, e de vez em quando a Catarina pergunta-me:
– É um macho, aquele melro preto?
Ou:
– Olha um tentilhão dos Açores, não é?
Porque os seus interesses são mais selectivos, mas, quando decide educar-se sobre uma coisa, então vai ficar a saber tudo sobre ela.
Na encosta, as árvores abraçam-se umas às outras, o louro bravo e o pau branco, as faias da terra e os metrosíderos de novo – não os santuários de solidão de que falava Herman Hesse, mas santuários de companhia e comunidade.
Voltamos pelas freguesias, devagar, falando das flores que tornaram a abrir, como numa segunda Primavera. De vez em quando detemo-nos na quantidade de verdes que um só olhar pode abarcar. E, quando paramos no Negrito a comer um gelado, dezenas de pessoas espraiando-se ao sol em pleno Novembro, eu digo que, segundo todas as aplicações no telemóvel, não deve chegar a chover um litro por metro quadrado toda a semana – uns pingos na noite de quarta-feira, e é tudo.
– Uma segunda Primavera – repito.
E entreolhamo-nos inquietos, porque de uma Primavera a mais ao beijo de Judas não vai assim muita diferença. Tantos dias consecutivos de sol e de flores e de pássaros – Outubro fora, Novembro dentro –, já não é um Verão de São Martinho: é novo sinal de que alguma coisa vai realmente acontecer, de que um dia não haverá memória de nada disto e de que esta própria felicidade, ao contrário das leis da química, já não se poderá transformar em mais nada.