«Puro deleite. Um senhor do verbo que é também dono de um olhar atento e perspicaz e de uma cativante humanidade. Uma linguagem de tal modo cativante que os pequenos nadas do dia a dia emergem reais e próximos também do leitor. Revelador de um carácter cujo retrato interior aos poucos vai emergindo.» ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA (Jornal de Letras)
«A escrita de Joel Neto procura sempre algo que está para lá das evidências, algo de inefável, de subterrâneo, de secreto. Opta pelo resgate dos momentos de revelação e deslumbre, em que se materializa a beleza pura das coisas simples. Um retratista exímio. Trabalha a prosa como trabalha a terra: com afinco, respeito e uma espécie de maravilhamento, de espanto.» JOSÉ MÁRIO SILVA (Expresso)
Outra boa notícia é o facto de eu ter passado a integrar o painel de O Fio da Meada, rubrica das manhãs da RDP-Antena 1. Patrícia Portela (terça-feira), Rui Cardoso Martins (quarta-feira), Paulo Alves Guerra (quinta-feira) e Alexandra Lucas Coelho (sexta-feira) são os restantes autores, cabendo-me a mim o dia de segunda-feira. A coluna é emitida em directo às 08:40 do continente e da Madeira, 07:40 nos Açores, e fica depois disponível em RTP Play e na generalidade das plataformas de podcast.
Entretanto, tivemos a honra – eu, a Catarina Ferreira de Almeida e o Arlindo Horta – de estrear no universo RTP (para já, na RTP Açores) o documentário O Caminho de Casa, que a Fundação Luso-Americana nos permitiu produzir. Centrado no impulso de regresso a casa sentido por açorianos (e portugueses) de diferentes origens geográficas, sociais e culturais, o filme tem realização do Arlindo e produção minha e da Catarina.
Estamos muito contentes com os primeiros resultados do documentário, que aliás já foi selecionado para o Caminhos do Cinema Português (Coimbra, 22 a 30 de Novembro), secção Ensaios. Esperamos vê-lo em mais festivais, mas de qualquer maneira já pode assistir a ele, tanto em versão lusófona como em versão anglófona, no Vimeo – livre e gratuitamente.
De resto, ainda preparamos para a recta final deste Outono a edição do livro Muito Mais do Que Saudade, que vem encerrar o projecto Palavras do Regresso, que reparto com a Catarina, minha mulher e parceira criativa. O livro traz a chancela da Cultura Editora, terá distribuição nacional e a nossa esperança é conseguirmos levá-lo às comunidades luso-americanas também.
No mais, e para nossa grande alegria, a peça que escrevemos juntos, A Vida no Campo, persiste em ganhar datas de exibição em novas localidades; eu continuo a colaborar com diferentes publicações, através de contos inéditos (como o publicado no Jornal de Letras) ou pequenos ensaios; sempre que posso, vou marcando presença em festivais (como o Outono Vivo, de que sou co-curador, ou o Arquipélago de Escritores), bem como dando o meu contributo em escolas, universidades seniores, congressos de classe e demais eventos em que a minha presença seja solicitada; e, de vez em quando, chegam-me os ecosmais inesperados sobre o alcance que o nosso trabalho pode obter.
Tenho em preparação tantas novidades para 2020, 2021 e 2022 – tanto na literatura como em áreas tangentes – que seria fastidioso anunciá-las aqui. Portanto, prometo ir-vos dando conta delas, como sempre: o vosso estímulo é essencial.
Até lá, já sabem: caso estejam interessados em ir acompanhando o meu trabalho, JoelNeto.Com tem informações regulares, incluindo sobre os eventos públicos em que vou participando. Também está à vossa disposição uma pequena livraria online no Facebook. E podem continuar a ouvir-me na Antena 1 e a ler-me nos jornais Diário de Notícias, O Jogo, Jornal de Notícias, Diário Insulare Açoriano Oriental, onde publico crónicas diárias, semanais ou esporádicas. Isto fora as redes sociais, onde também estou presente.
Um abraço a cada um. Deixo-vos (no rodapé) o conto Enviado Especial, que publiquei este Verão no Jornal de Letras.
Joel
PS: se porventura receberam este boletim de um amigo e quiserem passar a recebê-lo directamente do site, basta deixarem-me aqui os vossos endereços de e-mail
Enviado Especial
de Joel Neto
No fim, foi sempre essa imagem: o automóvel encostado à berma escura, o motor ligado ainda, e ele levantando-se pesadamente do lugar ao lado do meu – apoiando-se à porta, debruçando-se sobre o banco de trás, a apanhar os jornais velhos, e arrastando-se enfim pela ruela, com os jornais acomodados em esforço debaixo de um braço e, na mão contrária, aquela pasta de pele puída, sempre muito cheia, onde talvez nunca tenha levado mais do que lixos apanhados ao acaso, recordações, objectos que talvez pudessem recuperar préstimo, quase nada.
– Os jornais são para os meus gatinhos – explicava-se, e a tanto se resumia a sua despedida.
Ao resto, nunca se referiu.
António Martins não era um homem, era um tempo. Talvez eu devesse até recordá-lo como Senhor António Martins, não fosse então regra das redacções de jornal o tratamento mundano e, sobretudo, não tivesse ele procurado tão desesperadamente sempre – ou quase sempre – fingir-se um de nós. Noite após noite, fechada a edição, dava-lhe boleia para casa, ali à Pascoal de Melo, cuidando de deixá-lo a duas ruas de distância para não chegar a ver onde vivia – alguma cave esconsa, umas águas-furtadas com goteiras, um antro de solidão, urina de gato e papo-secos com bolor. Creio que me dizia fazê-lo para o proteger a ele, e a consciência de que afinal me protegia a mim há-de ser a melhor prova de que me tornei um tempo também.
Trabalhava na minha secção, e esse foi o nosso problema. Nunca me ofereceu o seu apreço, apesar daqueles quinze minutos diários que dividíamos, há muito passada a meia-noite, porque éramos os últimos a deixar a redacção. Ele tinha mais de setenta anos, oitenta se nos ativéssemos ao modo como os seus olhos se marejavam com cada procedimento que dizíamos actualizar – era a palavra que usávamos, «actualizar» –, e eu não mais de vinte e quatro. Quisera a Direcção que fosse eu o chefe, e isso nos dividia. Tudo no António Martins era antigo: os métodos, o blazer, a empáfia de gestos na semana do Torneio da Pontinha. Mantê-lo custava dinheiro e custava rigor, diziam-me. E cabia-me a mim mitigá-lo, embora eu desconfiasse de que também isso haveria de dar aos burocratas uma razão para o declarar obsoleto.
Na altura acreditava-se no rigor e os burocratas ainda não tinham deixado de precisar de uma razão para declarar um homem obsoleto.
Todos os dias, ao chegarmos à redacção, já lá estava ele, fazendo telefonemas. Não acreditava em computadores, e de qualquer maneira a Internet era um recém-nascido de que a maior parte de nós desconfiava também. Nem sequer tinha mesa atribuída, o velho Martins: usava aquela cujo proprietário se encontrasse de folga, esforçando-se por parecer que lhe pertencia a ele. Então, agarrava no telefone e punha-se a fazer chamadas.
Aos fins-de-semana, chegava mais cedo ainda. Em vez de notícias avulsas, seleccionadas mais pela oportunidade do que pela urgência, tinha de preencher uma página com resultados de campeonatos distritais, juvenis e femininos – tudo isso que só interessava aos intervenientes e a uma certa ideia de dever de informação. E era ao telefone que dava a volta ao país. Ligava para a GNR, à procura do agente que policiara certo jogo. Ligava para os Bombeiros Voluntários, a conferir se fora preciso ir socorrer alguém a outro.
– O meu amigo sabe-me dizer o resultado do Nespereira-Canas de Senhorim?
Às vezes, se o interlocutor já o conhecia, a ele ou ao seu mister, era fácil.
– Três a zero? Ganhou o Nespereira? – recapitulava o Martins. – Imparável, o nosso Nêspera! Havemos de marcar um arroz de carqueja.
Outras vezes atendia algum rapazote, um rapazote igual a nós, e logo o velho se punha aos berros, a cabeleira branca e farta num estertor:
– Nespereira-Canas de Senhorim! Não foi o cavalheiro que foi fazer o policiamento? Estou a perguntar o resultado, homem! Ensinaram-lhe a contar ou não?
E nós sabíamos que aqueles berros despachados, disfarce de mais berros ainda, de murros e de pontapés, não eram para o pobre agente Sousa, logo por azar escalado nessa tarde para a Nespereira, mas para nós – sobretudo para mim, que era o chefe. Como sabíamos que o velho Martins nunca honraria os convites para carquejas, cabidelas e migas de pão, porque havia uns bons dez anos que a Direcção não o enviava em reportagem a mais de quinze quilómetros de distância.
E eu ficava ali, a ouvi-lo e a perguntar-me quantos gatinhos teria, lá no seu antro de solidão e papo-secos. Se haveria alguma outra palavra, além de gatos, que fosse capaz de pronunciar no diminutivo. O que se esconderia, afinal, dentro daquela pasta misteriosa.
De resto, ia perdendo o empertigamento ao longo do dia, o velho – como se se tornasse cada vez mais inútil disfarçar a irrelevância da sua demanda. O facto é que tinha um trabalho suplicioso a recolher aqueles resultados, e às vezes até inventava alguns, só para não os deixar em branco na edição da manhã. Todas as semanas recebíamos telefonemas de protesto – da Beira Alta e de Trás os Montes, do Algarve e até dali ao lado, de Sintra ou de Torres Vedras. Mas às dez da noite tínhamos mesmo de dar as páginas por concluídas. Portanto, mal passavam as oito e já o António Martins, que ganhava à letra, se pusera a escrever à mão naqueles linguados antigos, que o Coelho da Secretaria depois transcrevia para o Wordstar:
– Associação de Futebol de Viseu. Campeonato Distrital da Divisão de Honra. Nespereira Futebol Clube-Grupo Desportivo e Recreio de Canas de Senhorim, 3-0. Sport Cabanas Viriato Benfica-Grupo Desportivo Cultural Recreativo e Social da Vila de Silgueiros, 1-1…
O Coelho, que também vinha do tempo glorioso dos jornais, agarrava no linguado e arqueava as sobrancelhas:
– Outra vez “Grupo Desportivo Cultural Recreativo e Social”? – E torcia o nariz para mim: – Ainda te lixas. A Direcção já não te mandou acabar com esta gaita?
Eu fazia um trejeito.
– Põe “Viriato-Silgueiros”. – Depois virava-me para o Raposo, que fazia as contas: – E tu, se fazes o favor, manda pagar como “Grupo Desportivo Cultural Recreativo e Social”. As letras e os espaços. À minha responsabilidade.
A verdade é que nunca a Direcção me importunou com o assunto. No ponto em que as coisas estavam, mais ninguém aceitaria passar o dia a amparar golpes a velhos ultrapassados e garotos contratados por engano, pelo que o melhor era não me darem motivo para me demitir de funções. Como acabei por fazê-lo, ao fim de algum tempo, a propósito de alguma causa francamente menos exasperante.
Pela Páscoa dava-se o Torneio da Pontinha, e então o António Martins não precisava dos favores de ninguém. Há muitos anos que cobria aquele evento, onde se reuniam equipas de pré-adolescentes de toda a Europa, e há outros tantos que as Direcções se iam legando a tradição de, ao menos naquela semana, o velho Martins poder voltar a ser o grande Martins. Nesses dias, António Martins só vinha à tarde, disputadas as partidas dessa manhã e a horas em que pudéssemos assistir à sua chegada. Atirava a pasta de pele puída para cima da mesa, despia altivamente o blazer, endireitava-o sobre as costas da cadeira, muito polido, e sentava-se a escrever nos seus linguados com uma caneta Parker.
Era uma entidade. E a organização do Torneio tratava-o como uma entidade, um enviado especial, porque há muito que nenhum outro jornal se fazia representar naqueles jogos.
Nessa semana, o Martins nunca ia lanchar connosco. Nós éramos uns fedelhos, pouco mais do que estagiários – seria um desprestígio deixar-se ver na nossa companhia (nisso parecia-se menos com o meu pai). Mas, no resto do ano, condescendia. Baixava connosco à rua, adentrava o café da esquina e, antes de cravar a primeira dentada na sandes de queijo, sacava da dentadura postiça, que depois se deixava a brandir como uma batuta, enquanto comia e contava as suas histórias.
De qualquer modo, pouca gente se incomodava. No Bairro Alto dos anos noventa, um velho de dentadura na mão enquanto comia uma sandes de queijo não era tão raro como isso.
Foi o Martins quem organizou a sua própria homenagem, quando fez cinquenta anos de jornalismo, e o secretário de Estado entregou-lhe uma medalha. Ainda hoje guardo a brochura amarelada que trazia o elogio, e que também foi o velho a redigir. Tem o seu rosto na capa, numa foto pequenina fac-similada a meio da página, e podia confundir-se com o programa de um funeral. Que o era também, em larga medida, embora não pelo António Martins: os jornais começavam a perder o monopólio dos classificados, e era sobretudo por eles que aquela desolada página chorava.
António Martins viveria mais quase dez anos, com autorização para se deslocar à redacção até ao último dia, o que talvez quisesse dizer que nem tudo o que houvera de benévolo nos jornais tinha morrido. A certas horas do expediente, contam-me os que ficaram até ao fim, chegava a não haver um só outro redactor a trabalhar, velho ou novo – a não ser o Martins. Nunca teve uma mesa, mas também não deixou de recolher informações pelo telefone ou de escrever à mão nos seus linguados, de que a certa altura, anunciada a extinção dos linguados também, arrebanhou meia dúzia de resmas e levou para casa no saco dos jornais velhos, de modo a que nunca lhe faltassem.
No dia em que morreu, ao que li no comunicado do Sindicato, não tinha ainda feito oitenta anos, afinal. Também ao seu funeral assisti de longe, como todas as noites assistia àquele cortejo rua fora, o automóvel encostado à berma, o motor ligado, e ele com os jornais debaixo de um braço e uma pasta de pele puída na mão contrária, caminhando rumo à casa que eu não queria conhecer.
Do que foi feito dos seus gatinhos, ou sequer de quantos eram, nunca encontrei notícia.