Versão radiofónica: aqui
Todos os meses aguardo com expectativa o Book Club, de James Naughtie. Todos os dias ouço Emilio Sampedro e as restantes vozes do BBC World News, trazendo-me notícias – e desenvolvendo-as com proporções – de todos os cantos do mundo, inclusive aqueles a que só ligamos por exotismo, raiva ou condescendência. Todas as semanas vou recuperar episódios do World Book Club, de Harriett Gilbert, ou do Books & Authors, de Mariella Frostrup.
Só a voz de Mariella Frostrup, meio Judi Dench e meio Demi Moore, chega para me fazer voar – e, ainda por cima (pecador me confesso), fui procurá-la no Google: é uma mulher bonita.
Sou consumidor principalmente da rádio e dos podcasts. Mas tudo nos diferentes canais BBC, TV e portais incluídos, é diferente. Onde os média americanos são belicosos, a BBC é equânime. Onde os média franceses são arrogantes – e belicosos também, porque há uma França cada vez mais americana –, a BBC é curiosa. Onde os média portugueses são excitadiços, a BBC é culta.
Ou é “mais” equânime, “mais” curiosa e “mais” culta – inclusive do que a generalidade dos restantes média britânicos, e não só os asquerosos tabloides. Ninguém é perfeito, nenhuma obra humana é perfeita. Mas na BBC não há espalhafato, não há ruído, e só isso já difere. Ademais, o inglês virou língua franca. Até os cãezinhos da rua falam inglês. Portanto, a BBC não é dos ingleses: é de todos nós – do mundo.
Pois, agora, Boris Johnson, estimulado por essa perigosíssima – e poderosíssima – eminência parda que dá pelo nome de Dominic Cummings, deu início ao ajuste de contas com ela. Acha-a hostil aos Conservadores, denuncia-a como escudeira do Remain, entende-a como um entrave ao triunfo do capitalismo-total a que aspira para o que restar do Reino Unido.
Para já, proibiu os membros do Governo de aparecerem no programa Today, da BBC Radio 4. E, entretanto, deu ordem a Cummings (ou terá sido ao contrário?) para recuperar a estratégia do thinktank New Frontiers Foundation, que este dirigiu, e que há uns anos desenvolveu uma campanha subterrânea para minar a credibilidade da cadeia e forçar a sua privatização.
Na altura não resultou, porque estavam no poder os Trabalhistas e quase só havia a blogosfera. Já hoje, estão no poder não apenas os Conservadores, mas o Sr. Johnson. Existem as redes sociais e o microtargeting, que produziram o Brexit. E instaurou-se uma embalagem global, produzida tanto pelo novo isolamento britânico como pelo seu desejo de se aliar aos grandes regimes populistas, que facilitará uma revolução no xadrez mediático interno.
Como? Muito fácil: extinguindo a taxa de serviço público que sustenta a BBC, como já se discute. Lançada aos leões como apenas mais um player, a cadeia terá de se deixar privatizar. Sem margem de manobra nos campos da deontologia e da imparcialidade, cada vez menos rentáveis, cairá nas mãos de um qualquer Rupert Murdoch. No fim, estará reduzida a uma Fox News (que o próprio Dominic Cummings dá como exemplo, diga-se): disponível para fazer-se instrumento da contaminação da opinião pública pela melhor oferta.
Parece uma história inglesa, mas não é. Vingue a estratégia, e levará a debate todos os serviços públicos de rádio e televisão do mundo. Levará definitivamente a debate a nossa própria RTP, incluindo todas as suas plataformas. O que eles decidirem acabaremos por decidi-lo nós também. E será o fim.
Não da RTP, ou não apenas da RTP. Estou pessimista: será o princípio do fim do que ainda sobre da paz, da prosperidade e (sim, apesar de tudo) da justiça deste (sim, apesar de tudo) oásis que dura desde a Conferência de Ialta.