Versão radiofónica: aqui
Um exercício bom seria pormo-nos a adivinhar onde dorme o Ricardo, da Uber, agora que está em Lisboa. O que é material na vida dele, afinal? Nada mais que aquele carro?
Perguntei-mo há dias, de regresso da casa dos compadres, após o habitual jantar pré-natalício da que chamados “família escolhida”.
Há anos que me mantinha fiel aos táxis, por uma solidariedade que talvez não fosse mais do que o desejo de guardar viva a Lisboa do meu tempo. Só que no último Outono, de passagem pelo continente, apanhei, consecutivos, três táxis cujos motoristas insultaram os congéneres da Uber, aos gritos pela janela, apenas pelo facto de existirem.
Chateei-me.
Entretanto, o Ricardo, chamado pela Pipa, recolheu-nos na Lapa, guiado pelo seu GPS. Tinha o carro asseado e foi logo simpático, à procura do tom para aquela hospitalidade em particular. A Catarina falou-lhe dos Açores, o que introduziu uma nota de bonomia na conversa, e então ele contou que era de Loulé e chegara a Lisboa havia escassas duas horas, com o carro que comprara cinco meses antes para fazer serviço no Algarve.
Pusera-se de imediato ao trabalho. Agora, planeava ficar até dia 24, ir fazer o Ano Novo a Vilamoura e regressar à capital.
– Isto no Algarve anda muito mal… – suspirou.
Não conhecia Lisboa. Nunca passara mais de uma semana na cidade e, sem o seu GPS, estaria perdido. Mas mantinha um sorriso verdadeiro, até feliz, e eu dei por mim a ter muita pena dele – mesmo se fazia pela vida, como nós na sua idade (e até na nossa).
Dormiria onde? – perguntei-me. Em casa de uma namorada? No sótão de um tio? Numa pensão rasca? E sobretudo: o que restaria de material na vida dele? Qual seria a sua casa? O que de físico o prenderia à vida? Quais seriam as suas rotinas, os seus lugares, os seus objectos?
Em suma: num mudo em desmaterialização acelerada, no qual se pode chegar a uma cidade desconhecida e começar de imediato a trabalhar por conta própria, a que se reduzem as nossas coisinhas? O que é que, hoje, nos prende ao mundo físico e nos obriga a lembrarmo-nos dele?
Na manhã seguinte, descarreguei a aplicação da Uber, juntei-lhe os dados do cartão de crédito e contratei cinco fretes de enfiada. Despachei com conforto bastos afazeres, e no rosto de cada motorista procurei sinais sobre onde seria a sua casa, se teria família, a que chamaria as suas coisas.
Suponho que seja da idade. Hoje, a nossa casa, os nossos objectos, as nossas árvores e terras – tudo isso me parece um registo importante da nossa passagem pelo mundo. O meu tio David, o homem mais pobre que conheci, tinha a casa toda decorada com aqueles bonequinhos de plástico que saíam nos gelados, e eu lembro-me de olhar para eles, depois da sua morte, como a história de uma vida.
Já o Ricardo, imagino, não tem coisinhas. Tem um carro que talvez até seja um leasing, um telemóvel que trocará quando o software rebentar com o hardware e umas roupas que desbotarão após três lavagens.
E nós também as temos cada vez menos, às coisas. Já nem o dinheiro é tangível. Chamamos um Uber e vai ter ao crédito. Entramos numa loja e basta aproximar o cartão da máquina. Tomamos um café e atiramos o dinheiro para dentro de um mealheiro gigante.
Já não se toca nas coisas – nem nos objectos, nem na terra, nem nas pessoas, e menos ainda no dinheiro. Temos as máquinas e as aplicações. Eu nem carteira uso, hoje: tenho uma skin, daquelas que levam três cartões e um par de notas apenas.
O dinheiro é como se diz da comida, naqueles livros para mulheres urgentes de se sentirem malandras outra vez: deve passar “através” de nós. Disso vive o Ricardo também. De táxi, pagando em dinheiro, eu nunca teria chamado cinco carros no mesmo dia. Mas era o cartão a pagar, não eu – e assim se foi o dinheiro todo.
Se calhar devíamos recuperar um significado bom para a palavra materialismo. Começa a fugir ao consumismo, e agora há uma nova metafísica nela.