APESAR DA PANDEMIA
… não preciso de nada. Quer dizer: preciso de pão fresco, frango sem pele, melões verdes, cápsulas de café – enfim, o que preciso todas as semanas. Tenho ali a lista, embora a saiba de cor: somos muito rotineiros, com essas coisas como com tantas outras. Se não conseguir ir ao supermercado amanhã, hei-de ir depois. De resto, não preciso de nada.
Portanto, começam a reabrir as lojas e, tal como há semanas verifiquei quanto às subscrições e demais dependências da Internet, dos computadores e das televisões, três quartos do que me reabituei a comprar nos últimos anos, e que inclusive havia anotado para repor numa entrada infinita na agenda a que todos os dias somava novas necessidades, são por ora dispensáveis.
Não preciso de roupa nem de sapatos, que os comprei os suficientes nos últimos anos. Não preciso do tal móvel para guardar a lenha nem do chapéu de aba para a chuva, que o Inverno está quase a acabar (mesmo nos Açores, espero eu). Não preciso dos novos auscultadores bluetooth para substituir os que parti, que os de fio servem bem para o uso habitual – não preciso de quase nada do que planeava comprar, e os gorros para usar em vez dos que o Gauguin comeu, hei-de comprá-los no Natal, se já for aconselhável ir a Lisboa: talvez vá à Muji, que os faz bem construídos.
Portanto, agora também não preciso de dar a volta à cidade cheio de sacos, como sempre aos sábados de manhã, recapitulando os horários de encerramento das lojas e das bancas, de modo a não me falhar nada. Não preciso de ir às floristas: tenho multiplicado imenso o que já tinha, o que me oferecem e o que vou encontrando nos baldios, e os plantios da horta deste ano – fora os que o Rodrigo me deu –, fi-los eu mesmo, com umas saquetas que estavam no frigorífico desde a Primavera passada e, afinal, germinaram bem. E também não preciso de nada das lojas de ferragens, já agora: nem das taramelas para a cancela (que afinal eram mesmo dispensáveis), nem das escápulas para fixar a rede ao muro (que por enquanto as trepadeiras não fazem força suficiente para o vento lhe pegar), nem do esmalte castanho para as serrilhas (que o Bondex mais escuro pega quase tão bem naquilo como na madeira), nem sequer do arame para fazer trepar a vinha contra a parede (que entretanto encontrei no fundo de uma caixa das ferramentas um rolo ainda mais de meio).
É o que não me tem faltado, nas últimas semanas: descobrir em caixas, por cima de armários, abandonadas em gavetas empenadas todo o tipo de coisas de que julgava que precisava, mas afinal ainda tenho. Nem sequer preciso de livros, coisa que talvez nem devesse confessar: tenho uma boa dúzia para comprar quando a coisa se restabelecer, dois ou três de pesquisa para o próximo romance mais os novos que os amigos próximos publicaram, mas de resto – a verdade é essa – sobra nas estantes muita coisa cujas leituras vinha adiando há anos, e que realmente há muito devia ter lido.
Preciso de ir buscar os jornais acumulados à Tabacaria, isso preciso. E as máscaras que encomendei ao João. E Ben-U-Rons para as dores de cabeça, que o confinamento teve em mim o mesmo efeito que nos restantes escritores: reduzir o rendimento e aumentar o trabalho.
De resto, preciso de uma máquina de lavar loiça nova, mas esta ainda aguenta uns tempos. Preciso de substituir a gaveta do frigorífico que se rachou, mas se não for na Primavera há-de ser no Verão. Preciso de ir comer uns chicharrinhos fritos ao Canadinha, ensopando-os em mais vinho do que o aconselhável, mas a espera só aguçará o triunfo final.
Ainda não preciso daquelas palmilhas em donut para a fascite, felizmente. Preciso de carne maturada da Quinta dos Açores, mas de qualquer maneira ainda não está tempo para churrascos. Preciso de pesos para diversificar os exercícios no jardim, mas continua sem os haver à venda no mercado local ou sequer online, pelo que vou fazer mais alguns com o que resta na garagem.
Talvez precise de alguns vasos e dois ou três cabos de alvião, para usar como barras. Mas não preciso de cimento e areia, que ainda tenho o bastante.
E preciso de ir ao dentista, realmente, mas penso que ainda não abriu. Já do barbeiro, não preciso. Ou melhor, preciso, mas para já corto em casa.
Desde o início que tive dificuldade em perceber a pressa de ver reabertos os cabeleireiros (pelo menos a dos clientes). A ansiedade, até percebo: vermo-nos ao espelho desgrenhados, com as raízes esmaecidas ou as pontas espigadas – enfim, a cada qual a sua angústia estética –, agrava a sensação de derrota e desconcerto que esta pandemia impõe. Trabalho em casa há anos suficientes para saber como é importante uma pessoa começar o dia pela higiene matinal – lavando-se e penteando-se e vestindo-se e perfumando-se como se fosse para a empresa, fazendo do corpo o mesmo lugar de dignidade e ânimo que tem de fazer do trabalho. Mas há uma razão para, (por exemplo) em Nova Iorque, Andrew Cuomo insistir em deixar barbeiros e cabeleireiros para o fim. Apesar do drama da subsistência dos profissionais do ramo, inquestionável: como é que se mantém a distância social ao longo de um corte de cabelo? A quantos riscos são expostos os clientes e os próprios profissionais?
Portanto, lamento pelos pequenos comerciantes de que sou cliente, tantos deles meus amigos já: por ora, não vou ser eu a reactivar a economia. Chamem-lhe egoísmo, se quiserem: eu chamo-lhe liberdade. Não preciso de quase nada, a maior parte daquilo de que preciso posso adiar – até os livros –, e o facto de ter sido uma pandemia cruel a lembrar-me disso não o torna assim tão menos libertador.
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* UMA CELEBRAÇÃO
O ‘Correio dos Açores’ acaba de tornar-se o quinto jornal centenário do arquipélago, terceiro de dimensão regional (depois do ‘Açoriano Oriental’ e do ‘Diário dos Açores’). Não é coisa pouca, neste tempo em que já dispensámos quase por completo a imprensa.
Tive saudades, hoje, das minhas primeiras redacções. O frenesim do fecho, as glórias e os fracassos, os rancores e as amizades, o ‘stress’ e a preguiça – os homens de vida pessoal devastada, os cancros precoces e o bem maior que então nos parecia o dever de informar.
Éramos uns pelintras e éramos também uns idealistas, mesmo se tão longe de ideais. Ainda não estou certo de que tenhamos sido nós a destruir a encantadora tradição da imprensa.
Tenho de escrever sobre isto.
* UM LAMENTO
O ‘lay-off’ entre os padres católicos, decidido numa altura em que os fiéis precisam tanto de conforto e o Vaticano acumula tantas riquezas, não é assim tão mais benigno do que o apoio dos pregadores protestantes a Trump e a Bolsonaro ou a indiferença de tantos imãs muçulmanos perante a necessidade de cuidados sanitários durante as celebrações do Ramadão.
Ficar a saber desse ‘lay-off’ não me fez lembrar-me das razões por que sou ateu, que são de outra natureza, mas fez-me lembrar-me dos motivos por que, durante anos, fui anticlerical. A minha hoje curta mas fundadora experiência, por sinal protestante (e não transversal a todos os clérigos protestantes, já agora), mostrou-me que, entre um homem mau e outro escondido sob a pele da bondade mas afinal tão mau como ele, a única diferença é a hipocrisia.
Entretanto, fiz as pazes com a adolescência. E ganhei amigos pastores e padres, que respeito – intelectual como moralmente. E vi chegar ao chamado trono de São Pedro o primeiro papa que consegui realmente admirar. Mas isso só me deixa mais descoroçoado: que pena a memória do anticlericalismo da juventude me assaltar precisamente agora.
* UMA PREOCUPAÇÃO
Tentar matar (talvez) num impulso. Voltar premeditadamente para confirmar a morte – e, na ausência de confirmação, infligir novo ataque, para garantir o sucesso da operação.
Não foi na Cidade do México, nem em Joanesburgo, nem em São Paulo. Foi na minha pequena cidade, onde até hoje uma rapariga podia passear-se sozinha às quatro da manhã, com os ‘headphones’ no máximo, sem sequer olhar para trás.
Isto é: um atropelamento intencional. Uma série de agressões suplementares. Uma volta de carro – e depois o regresso ao local do crime, para mais agressões ainda, de modo a garantir que o homem morrera.
Não morreu, mesmo assim. Mas não deixa de ser lição para qualquer ponto do país e do mundo. E também para estes Açores de desemprego, dependência da Segurança Social (e de tudo) e profundamente débil educação que muito – muito – antes da covid-19 já estávamos a construir.
Talvez seja um epifenómeno, motivado por pretextos conjunturais, como sempre os há na ruralidade e nas grandes cidades. Especulo, embora com dados concretos: o mercado dos estupefacientes enfrenta uma escassez gravíssima em todo o lado e, ao que ouço, um caso local de ‘phishing’ em massa expôs recentemente a intimidade de uma série de mulheres e raparigas.
Não sei: não faço ideia de quem são os rapazes (nem os atacantes nem a vítima) ou os que os moveu. Sei que o desvelo disto denuncia uma enorme sensação de impunidade. E, infelizmente, creio que devemos esperar mais, sobretudo quando o desemprego, a necessidade e até a fome se instalarem a sério em diferentes freguesias, bairros e famílias.
Resta-nos ter esperança de que não seja pior. Ou sequer tão mau.
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* UMA ENTREVISTA QUE DEI
QUAL A PRIMEIRA MEMÓRIA QUE TEM COMO LEITOR?
Estava na cozinha da versão anterior daquela que é hoje a minha casa e – diz-me a minha mãe – tinha quatro anos. A casa pertencia então ao meu avô. Ainda não tinha ocorrido o terramoto de 1980, que a arrasou, e a disposição das divisões era distinta. Não sei se o meu pai também estava na cozinha, ou sequer os meus avós. Não me lembro da minha irmã também. Mas tinha a Bíblia Sagrada nas mãos, aberta no Génesis, e, apontando uma letra de cada vez, ia dizendo os nomes delas. A minha mãe assinalou: “Já sabes soletrar. Isso chama-se soletrar.” E eu repeti: “Foi o meu avô que me ensinou.” E depois continuei ali a soletrar noite fora, com o resto da família entrando e saindo (é essa a memória que tenho), e inclusive muito depois de todos os mais velhos, revirando os olhos, já se terem ido enfiar na sala a ver a Escrava Isaura.
QUAL É A SUA SANTÍSSIMA TRINDADE DA LITERATURA?
Entre os autores? Não é fácil. Talvez Melville, Graham Greene e Saramago. Deus é um tema central para mim, como sempre acontece com os ateus.
A QUE LIVRO VOLTA SEMPRE?
A vários. Nos últimos tempos, volto muito a O Ano da Morte de Ricardo Reis. «Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo.» Há dias em que podia ser um lema para enfrentar a pandemia.
SUBLINHA OS LIVROS, DOBRA OS CANTOS DAS PÁGINAS, OU OS LIVROS SÃO PARA SE ESTIMAR SEM DOBRAR AS LOMBADAS DURANTE A LEITURA?
Sublinho, dobro, maltrato um bocado. Depois guardo-os com essas marcas, relativamente bem catalogados, até chegar a altura de os ir buscar de novo e imprimir-lhes novas marcas ainda. Muitas vezes, rio-me do que as marcas anteriores dizem do homem que eu era. Outras, temo que já não haja salvação para mim.
QUE LUGAR QUIS CONHECER POR CAUSA DE UM LIVRO?
A América atravessada de uma ponta a outra, por causa do Viagens com o Charlie, do Steinbeck. Não fiz o mesmo trajecto, mas procurei passar em todos os lugares que me tinham marcado na narrativa. Entretanto, um ano destes também vou querer ir às montanhas do Ngongo, por causa do África Minha, de Karen Blixen, que só agora – imperdoavelmente – estou a ler.
SENTE REMORSOS DE DEIXAR LIVROS A MEIO?
Não. Há muitos livros e o tempo é finito. Mas imagino-me a ter vergonha de alguém entrar na minha biblioteca, depois da minha morte, e encontrar tantos volumes apaixonadamente sublinhados até à página 200, ou 150, ou 100 – e a partir daí intocados. Suponho que seja falta de auto-estima.
QUE LIVRO GOSTAVA DE COLOCAR TODOS OS PORTUGUESES A LER?
Os Miseráveis (lá está Deus de novo…). Equivale a um mestrado, no mínimo – mas daqueles de que se sai a saber ler.
QUE LIVRO GOSTAVA DE TER ESCRITO?
Gente Feliz Com Lágrimas (… e de novo). Agora é tarde de mais.
O QUE O ACOMPANHA SEMPRE NA LEITURA?
Uma esferográfica. E um par de óculos, agora (que remédio).
QUANTAS VIDAS PRECISARIA PARA LER TODOS OS LIVROS QUE TEM LÁ EM CASA?
Várias, parece-me. Mas de certeza não iria passá-las sem adquirir novos livros, pelo que a missão permaneceria incompleta. Talvez esteja aí o segredo da vida eterna.
O QUE O PODE IRRITAR NUM LIVRO AO PONTO DE O DEIXAR DE LADO?
O verbo irritar muda a equação. Não creio que algum livro me irrite – pelo menos algum a que eu chegue a dar uma oportunidade. Os que têm esse potencial ajudam, pelo menos, a sustentar a indústria editorial. Com o que rendem hão-de publicar-se outros livros, e talvez melhores – está tudo certo.
(versão completa aqui: https://euleioemcasa.pt/tete-a-tete-literario-com-joel-neto/?fbclid=IwAR0CV2vbnV51idPtu9TCaP3J5dhDXTzTUpNaWGWhXhEFn8avkBDgSgmAtN0)
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