APESAR DA PANDEMIA
… estendo a roupa por prazer, e não só por obrigação.
É claro: a Sónia faz-nos muita falta. Nem sempre temos a real consciência da quantidade de afazeres de que nos alivia, nas duas tardes por semana que vem cá a casa. E é uma ternura connosco, apesar das nossas manias urbanas que nem toda a gente da terra consegue compreender. E ainda por cima é discretíssima, preciosidade poucas vezes à disposição do freguês numa ilha pequena.
Mereceria que continuássemos a pagar-lhe mesmo que isso não fosse um gesto da mais elementar justiça. Um dia destes mandou-me uma mensagem: diz que até dos cães tem saudades – inclusive dos dias, percebi, em que andam os três de volta dela, nós refastelados no ginásio, levantando pesos e dançando sobre steps, e eles desarrumando o que ela arruma, obrigando-a a arrumar de novo, e de novo, e de novo.
Temos saudades dela e temos falta da ajuda dela, que a nossa rotina de trabalho é a mesma de sempre e as arrumações tiram-nos o tempo que já antes não havia. Mas eu não sei se, quando for altura de ela voltar, lhe devolvo a tarefa de estender a roupa.
E de a recolher. E de a pôr a lavar. E de a sacudir ao tirar da máquina. E de a dobrar provisoriamente. E de a esticar ao estendê-la, sob aquele telheiro em painel-sanduíche que eu e o Chico instalámos sob a latada de buganvílias e rosas-dos-beirais.
E de voltar a dobrá-la ao recolhê-la, de modo a que quase toda ela possa dispensar o ferro de passar. E de a distribuir bem dobrada pelos armários e gavetas, com uma sensação de concretização rara, inspirando os seus odores a rosas frescas e a alfazema.
Agora que penso nisso, pergunto-me se o excesso de obrigações dos últimos anos me forçava verdadeiramente a deixar de estender a roupa, como fiz durante tanto tempo – mesmo com empregada.
Não gosto de todas as tarefas domésticas. Desde logo, não gosto de passar a ferro: é um trabalho que nunca me parece concluído, e para isso já eu tenho tudo o mais que faço na vida. E também não gosto de limpar a casa, provavelmente pelas mesmas razões.
Gosto de cozinhar, mas, como a Catarina também gosta, dividimos a função. Gosto de ir às compras, apesar da tensão com que uma pessoa o faz agora. E gosto de lavar a loiça, embora à mão. Muitas vezes, vou a postar-me sobre o lavatório, pronto para me deixar ali meia hora sem pensar em nada – ou talvez a pensar em tudo –, e fico até aborrecido por a Catarina já ter arrumado a loiça suja na máquina, para despachar.
Mas não gosto de mais nada como de estender a roupa.
O ar livre é o meu habitat, já se sabe. Cuidar do jardim, da horta, do pomar – talvez não tenha nascido para mais nada como para isso. E, mesmo assim, não sei se não gosto ainda mais de estender a roupa.
Até me levanto mais depressa, no dia em que tenho de estender a roupa. Gosto tanto de estender a roupa, ali em silêncio, com o sol brando da Primavera banhando o jardim, que chego a fazer uma pausa para um cigarro, até duas – só para poder prolongar aquele momento.
De vez em quando ligo o telemóvel num podcast de entrevistas, e demoro-me tanto a estender a roupa que consigo ouvi-lo até ao fim. Na maior parte dos dias fico simplesmente ali em silêncio, a desdobrar e a esticar e a estender com aquelas molas bonitas que comprei na Amazon – as peças maiores atrás e as mais pequenas à frente, os padrões de cores como as senhoras antigas ensinavam às filhas casadoiras, os pares estendidos lado a lado, com distâncias suficientes para o ar circular.
Talvez pareça o ritual de um psicopata. É uma rotina de descompressão inigualável – uma terapia anti-stress, como se diz agora. Há nela um lado maquinal de tal ordem, uma lógica tão fácil de discernir e aplicar, que às vezes parece-me que podia ficar só a fumar e a olhar o jardim, que ela fazia-se sozinha na mesma.
Estou ali a estender a roupa, ou a recolhê-la para dentro das safatas, e não há novos surtos do vírus, nem chefes de estado populistas e irresponsáveis, nem o medo de que África seja o próximo continente dizimado, nem sequer os meus pais condenados a ficar em casa muito mais tempo do que aquele que já levam. Há apenas aquela roupa fresca e cheirosa, as buganvílias e as rosas-dos-beirais abrindo ao sol, a erva nascendo por entre as frinchas dos passeios lajeados, os pássaros chilreando nas suas azáfamas matinais, em busca de namoricos e de comida.
Não tenho de ser criativo – sobretudo isso. Um momento sem criatividade nenhuma, sem obrigação nenhuma de dizer ou de escrever ou de pensar o que quer que seja, a não ser em como estender aquela roupa pela ordem certa, prendendo-a nos pontos certos, com as distâncias certas.
No fundo, estendo roupa pela mesma razão por que algumas pessoas lêem livros: para me entreter. A Ana Margarida, naquela entrevista que demos juntos há dias, é que o verbalizou bem: para um escritor, como para alguns leitores, não é a literatura que constitui um refúgio para a realidade, é a realidade que constitui um refúgio para a literatura.
Estender a roupa é a minha realidade ideal. Talvez porque, no fundo, não haja nada mais desprovido de literatura do que isso.
É um alívio.
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* UM CONSELHO
Aproveitem o novo silêncio do mundo para ouvir o canto dos pássaros. As hormonas que esse gesto liberta – prova-o a ciência – fazem efectivamente diferença na nossa saúde mental. Talvez isto possa ajudar-vos a identificá-los. Ou a escolher aqueles a ouvir: https://coneixelriu.museudelter.cat/ocells.php?fbclid=IwAR2LxL-NiOKHfGOxvq3UGbg6wRVCt6WHnadq8ejG-0vCOIO4XoECPGedpc0
* UMA IRRITAÇÃO
Estive a ouvir os programas de debate desta semana e penso que podemos oficializar a estatística: já não falta um só comentador usar a palavra “bizarro”. Depois digam-me que não estamos todos a pensar essencialmente dentro da mesma caixinha. E que não continuam ser, como há tantos anos, os humoristas – e sobretudo os das piadas formatadas – a criar todas as ‘trends’.
* UM LAMENTO
A verdade é que as três maiores lições desta crise, as lições estruturais que transcendem até os erros políticos e diplomáticos, o recrudescimento dos populismos, os perigos do multiculturalismo acrítico e a demais espuma dos dias e dos meses, serão mal aprendidas, e ainda por cima na razão inversa da sua importância.
A terceira lição a aprender é que somos todos vizinhos, já não há geografias nem povos distantes, e essa proximidade tem virtudes e riscos – muitos de nós vão aprendê-la.
A segunda lição a aprender é que não só não podemos deixar cair os sistemas públicos de saúde, como precisamos de reforçá-los nos países onde ainda existem e criá-los nos países onde não existem – alguns de nós vão aprendê-la.
E a primeira lição a aprender é que obviar de um modo consolidado aos efeitos sanitários, sociais e económicos das pandemias deste tempo de circulação-total só se fará com a mesma receita com que se teria obviado de um modo consolidado aos efeitos das grandes crises do século XX: uma partilha mais equitativa da riqueza entre países, povos e pessoas – e poucos de nós vão aprendê-la.
Creio que sou um optimista.
* PARA VER, OUVIR OU LER
Tenho sugerido muitos livros e autores, nos últimos dias: a pedido de instituições (a propósito do Dia Mundial do Livro e não só) e até por iniciativa própria. Ainda não sugeri Raymond Chandler.
Adequa-se bem tanto à urgente necessidade de escapismo como à dificuldade de concentração que esta pandemia e os seus ruídos nos trouxeram: é, digamos, fácil de ler. E, no entanto, é também magistral.
De cada vez que o leio, torno a perguntar-me: como é que Chandler consegue aquilo, usar Marlowe como narrador e o leitor como centro de consciência – usar ao mesmo tempo a primeira pessoa e (meço as palavras) a focalização externa?
E, se começamos a perceber como ele consegue fazê-lo, continuamos a perguntar-nos: onde foi ele buscar a ideia?
Um génio absoluto. Experimentem, por exemplo, “A Dama do Lago”. Acima de Philip Marlowe, só Sherlock Holmes.
* FEIOS, PORCOS E MAUS
* UM POEMA QUE VOS LEIO
https://www.facebook.com/neto.joel/videos/223594692241392
«Escrevo como um animal, mas com menor
perfeição alucinatória. Não sei imprimir as três linhas
convergentes do pé da gaivota, nem os pomos
leves da pata dos felinos. Só de uma forma rudimentar
escrevo, e estou a predestinar-me ao fim.
Depois de tantos séculos posso afirmar
que a escrita é uma escravidão dura.
Sei que é inútil e desumano mover as mãos
assim. Nem estou convicta de que seja digno
escrever desta maneira; é uma manufactura triste,
quando as mãos podiam apenas escavar
na terra ou no corpo. Podem ficar as palavras
somente na fita magnética como nas cabeças loiras.
Nada na infância nos deveria obrigar
a traçar as patas dos roedores repelentes
que são letras. O som da boca deve escrever-se
no écran, com a nova razão da nova máquina
da realidade. Na areia, porém, ou no mosaico molhado
terei de aperfeiçoar a minha pegada. Aproximar
dela a mão até alcançar a harmonia do trilho
do escaravelho. Uma fieira de montículos
e ranhuras até ao infinito que para ele é o mar.
Há quantos séculos os seres humanos se aprisionaram
no mito da caligrafia. Como tem sido penoso esse gesto,
há tanto tempo, e só eu o renego, porque sinto
a opressão com que alguém o tornou mais nobre
do que a minha fala ou a minha visão, únicas
propensões inatas. Prefiro aprender pormonorizadamente
a conservar uma impressão digital. Há um pensamento
abstrato e maquinal que decora a História com inteligência
mecânica, e por isso é supérfluo escrever. Só alguns
raros escribas, como os desenhadores de máquinas,
seriam necessários. E poderia descansar a cabeça
no regaço da lama.
Ensinaria à infância a gravar
no pó de talco a palma das mãos e a considerar as palavras
modulações da voz pura, sem a mancha embaciada
compacta que paira diante dos olhos sempre
que se fala. A mancha que se desloca no raio de visão
e desbota qualquer imagem como a chama de uma vela
com a fuligem constante a torná-la opaca.
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO (1976)
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* UM TEXTO QUE PUBLIQUEI
CE QUE TENTENT DE DIRE LES ARBRES
Par Joel Neto
* versão em francês do Capítulo 27 do folhetim Bode Inspiratório (tradução de Joana Cabral)
Et, lorsqu’il cessa de rire, déterminé à apprendre désormais à pleurer, Reboredo se retrouva face à une série de souvenirs dont il ignorait l’origine.
Il ressassait des choses sottes et heureuses, lui aussi, et tout cela était subversif et nouveau – ce qu’il pensait et ce qu’il sentait et ce qu’il craignait et ce qu’il imaginait, comme les hommes complets pensaient et sentaient et craignaient et imaginaient.
Il plantait une fleur et l’arrosait tous les matins jusqu’à la voir fleurir. Il cuisinait un repas chaud et prenait son temps avant de le goûter, tentant d’identifier ses arômes et ses subtilités. Il caressait la tête d’un chiot et sentait la langue de l’animal lui lécher l’oreille pour le remercier.
Il faisait paître des moutons sur une montagne, le doux froid du crépuscule le frappait au visage, et ce n’étaient pas des moutons électriques. Il étendait une corbeille tout entière de linge dans le vent et pliait une paire de chaussettes usées et enfilait ces chaussettes encore tièdes du soleil, très confortables.
Il griffonnait une liste de courses, et sortait en direction d’un marché du samedi matin et il saluait ses voisins au passage, et arrêtait sa voiture pour boire un café chaud au milieu des gens – puis il téléphonait chez lui pour aucune raison particulière, simplement pour savoir si tout allait bien, si tout continuait d’aller bien depuis qu’il était sorti moins de quinze minutes auparavant, parce qu’il avait une femme et il l’aimait, et cette femme avait le visage de Teresa.
Des choses heureuses et sottes, répéta-t-il.
Il se demanda si ces choses existaient vraiment. S’il avait lui-même existé. Si elle avait existé. S’ils avaient tous existé, ou s’ils n’étaient pas plutôt le produit de l’imagination tordue de quelqu’un, d’un écrivain, de plusieurs écrivains, de beaucoup d’écrivains, d’un écrivain doté de plusieurs consciences – le produit de ses tentatives, indispensables et inutiles, pour réordonner le monde, des histoires qu’il inventait et la manière dont finalement il en suivait la trace, de façon le plus souvent anarchique et incohérente, dans l’espoir qu’elles continssent malgré tout une vérité et qu’une seule et unique fois, une fois rédemptrice, en un instant miraculeux et singulier, il puisse la saisir.
Et il y avait un grand-père.
Était-ce un grand-père ? Son grand-père à lui ? Son grand-père à elle ?
Il lui parlait des arbres.
Oui, des arbres.
Il lui parlait des arbres et il aimait les eucalyptus, et il lui parlait souvent des eucalyptus, ce grand-père. Et il citait des vers d’un poète ancien:
«Ce que tentent de dire les arbres
Dans leur lent silence et leur vagues rumeurs,
le sens qu’ils ont là où il sont,
la révérence, la résonance, la transparence,
et les accents clairs et sombres d’une phrase aérienne.»
Oui, il avait un grand-père, et c’était le sien. Et ils étaient au temps de la première pandémie. Et son grand-père lui récitait ces vers, et lui aussi s’appelait Reboredo. Et il lui disait que, les derniers jours, lorsque les hommes s’étaient mis à diaboliser aussi les arbres – les arbres et tout ce qui leur avait été utile auparavant, et avant cela beau, et encore avant même bon –, il n’y avait plus rien à faire pour eux.
Et maintenant Reboredo ne savait pas s’il s’agissait vraiment de souvenirs, tout cela, rien de tout cela, ou s’il ne s’agissait pas, au contraire, de greffes dont le programme l’avait muni pour lui faire croire qu’il existait.
Et il ne savait pas si c’étaient vraiment des souvenirs ou des expressions de son désir d’être un homme.
Et il ne savait pas si c’étaient vraiment des expressions de son désir d’être un homme ou des inventions de sa tête, afin de remplir les espaces blancs – ni si c’étaient des inventions de ce qui restait d’humain dans sa tête ou de ce qu’elle contenait de machine, comme un bug, et il ne pouvait pas non plus décider ce qu’il aurait préféré, car il n’était pas sûr de savoir quelle partie des deux pouvait être la moins menteuse.
Mais il savait qu’il y avait eu un désir, au milieu de tout cela, et il voulait s’accrocher à ce désir, parce que cela aussi définit un homme : son désir de l’être. Et peut-être que les autres le savaient déjà, tous, ceux de la résistance, Alberto lui-même – peut-être la vérité toute entière, bien plus qu’il ne savait lui-même –, mais, quoi qu’il en soit, il était impatient de le lui raconter.
#apesardapandemia