APESAR DA PANDEMIA
… ou talvez por causa dela, plantei um banco de jardim na encosta que se ergue aqui por detrás de casa. Tínhamos acabado de desbravar mais um talhão de matagal, eu e o Chico, e de repente descobriu-se sobre o novo limite do quintal uma ladeira em terra batida de que já só a minha mãe se lembrava, tantos tinham sido os anos que passara coberta pela vegetação. Limpámo-la bem, munimo-la de uma plataforma com pedra lajeada que o Galão me deixou ir recolher pelos cerrados dele e, enfim, levei para lá um dos bancos do jardim, que pus ao lado de uma mesinha que encontrei na garagem, pintei com duas demãos de bondex e decorei com um cinzeiro.
Na segunda-feira de manhã, subi a encosta com uma chávena de café e um maço de cigarros, sentei-me no banco, olhei as flores aos meus pés, a freguesia lá em baixo, a paisagem que se estende na direcção do mar, e dei por mim a dizer: “Eu podia assistir daqui ao fim do mundo.”
Não, não foi por causa da pandemia: tinha feito este plano há muito tempo, e a ideia de pôr lá um banco, para tomar o café matinal ou fumar um cigarro ao crepúsculo, nem sequer fora minha – fora do Chico. Há mais de uma década que me ajuda a criar um jardim, quimera que abraçou como se fosse sua, e, de cada vez que assumimos ambos que já chega de crescer, que não se farão mais obras, que agora será só cuidar das plantas e mais nada, é sempre ele a sugerir nova investida.
Nem sequer posso dizer que instalámos no topo da ladeira uma plataforma de pedra lajeada: eu apenas carreguei a pedra – foi o Chico quem fez a plataforma, como aliás é ele quem já está a prolongar os muretes em volta dela também.
Mas o facto é que, da primeira vez que subi a encosta com uma chávena de café e um maço de cigarros, sentando-me no banco e olhando o horizonte, dei por mim a dizer: “Eu podia assistir daqui ao fim do mundo.” E que me inquietou ouvir-me dizê-lo, porque o dissera com um tanto de humor e outro tanto de convicção: se o fim do mundo estivesse realmente próximo, como às vezes tem parecido que está, então nenhum outro lugar me parecia tão apropriado a esperá-lo como ali, sentado com uma chávena de café quente, a fumar e a olhar as flores, a terra e o mar.
Tão-pouco me inquietou assim tanto, a verdade é essa. No meu interior, aquele banco chama-se Banquinho do Fim do Mundo, e traz-me uma certa paz que se chame assim.
Não posso escondê-lo: este confinamento a que o combate à dita covid-19 nos votou assenta-me bem. Sempre trabalhei em casa, não tenho filhos com que me preocupar e, nos últimos anos, o excesso de solicitações e o relativo à-vontade financeiro – comparo-me sempre com os pobres, nunca com os ricos – transformaram quase todos os momentos destes portões para fora num ruído de obrigações e consumismos que há muito me tinha extenuado. Ter de ficar em casa, e de reduzir todo o género de necessidades, e de fazer da inventiva ferramenta doméstica também tem o seu quê de regresso primordial a esse momento em que, há agora quase oito anos, eu e a Catarina metemos os pertences num contentor e nos viemos instalar aqui, algo assustados, em busca da vida simples e barata, porque as indústrias de que sobrevivíamos, os livros e os jornais, estavam em dificuldades.
Continuamos a sobreviver delas e elas continuam em dificuldades, aliás maiores agora ainda.
Entretanto, já sentimos falta de bastas coisas, eu como a Catarina: os passeios com os cães na Fajã da Serreta, os almoços de sábado no Canadinha, as sessões de cinema de má qualidade à sexta-feira à noite, os jantares infinitos com o gangue – e, evidentemente, as escapadinhas ao continente também, para ver a família e os amigos ou mesmo, no meu caso, para visitar os leitores em escolas, bibliotecas, feiras, festivais. Sentimos saudades de tudo isso, ao fim de pouco mais de um mês de confinamento (recolhemo-nos antes de ser obrigatório), e é evidente que a passagem das semanas vai agravá-lo.
Além do mais, preocupa-nos a evolução da epidemia. Todos os dias lemos dezenas de jornais e ouvimos dezenas de podcasts e temos dezenas de conversas sobre o que se está a passar pelo mundo, no continente, aqui nas ilhas. Temos pais quase idosos, principalmente os meus, nunca nos deixámos alienar o suficiente para que o sofrimento dos homens se reduzisse a um zumbido e, além disso, a memória do planeta depende da consciência desta espécie.
Mas, aqui, temos um jardim, um pomar e uma horta, e que não é por estarem ainda em crescimento que deixam de confortar-nos. Temos três cães saudáveis e amigos, cada qual com a sua amável e singular personalidade. Temos despensa que chegue para meia dúzia de dias, com criatividade provavelmente para bastante mais. E temos, sobretudo – e agora, falo por mim –, aquele banquinho, o Banquinho do Fim do Mundo, e em que de repente vejo metamorfosear-se a própria ideia de casa.
Talvez se distingam aí, as pessoas, mais do que em qualquer outra coisa: entre aquelas que estão contentes por ficar em casa e aquelas que já não aguentam mais não sair – entre aquelas que gostam de estar em casa e aquelas que não gostam.
Eu não quero morrer. Gosto demasiado da vida, as mais pequenas coisas continuam a exercer em mim a maior curiosidade, creio que sou feliz e não tenho vergonha de dizê-lo. Mas algo me diz que essas são as mesmas razões por que talvez tenha um pouco menos de medo de abordar a morte do que aqueles que nem a própria palavra conseguem proferir. E quiçá encontre um pouco mais de fascínio neste desolador espectáculo que o planeta nos proporciona – tenho o meu Banquinho do Fim do Mundo para me sentar e assistir.
Eu hei-de morrer a olhar as flores.
* TAMBÉM ME CUSTA
Ver os meus pais à janela apenas. E não ter connosco a Sónia, a quem deixo os pagamentos na caixa do correio até que seja seguro ela voltar. E não me sentar na esplanada da venda a tomar café com os velhos da freguesia. Mas no outro dia conversei brevemente com o Sr. Dimas, quando saí para encomendar cigarros. Ontem recebi uma mensagem da Sónia a dizer que até dos cães, que ficam a fazer-lhe companhia enquanto limpa a casa e passa a roupa, tinha saudades. E, entretanto, estou a preparar uns plantios de tomateiros para o meu pai, que me ensinou a cuidar deles e ainda hoje, apesar do frágil miocárdio, os planta com o garbo de uma missão pessoal. É a normalidade possível. E uma fase.
* UMA RAZÃO PARA CELEBRAR
Já aqui elogiei Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, apesar dos seus erros e percalços. O facto é que temos sorte com os líderes da oposição em vigor também (Rui Rio à cabeça), e aliás com a classe política em geral. Basta olhar para o exemplo de Espanha e os resultados em que as disputas partidárias fizeram redundar – e ainda nem redundou – a epidemia no país. Depois de tantos casos de corrupção, aliás um problema endémico, os nossos representantes precisavam de uma oportunidade para demonstrarem sentido de estado. E, em geral, têm-na aproveitado.
* UM APLAUSO
As raparigas que criaram no Facebook um grupo de admiradores de Tiago Lopes, e a que deram o nome de Fãs do Tiaguim, têm uma virtude suplementar: a autodepreciação. A Terceira sempre praticou muito o humor, mas é fraca na autodepreciação, género de humor um degrau mais sofisticado do que o habitual. De resto, já me tinha ocorrido, ao ver o director regional da Saúde – seguro, sóbrio e razoável na comunicação dos esforços dos Açores contra a pandemia – gozar de uma hora de directo televisivo diário, recombinando gravatas e pulóveres em “v”: este rapaz, um dia que queira, pode ter uma vida sexual dos diabos. Portanto, são dois aplausos, na verdade.
* UMA PREOCUPAÇÃO
Leio sobre a evolução da pandemia em África: zero contaminações oficializadas em meados de Março, 52 países atingidos três semanas depois. E o pior ainda está para vir. Resta-nos esperar que a juventude da população (e que também significa baixa esperança média de vida) e a longa experiência com todo o tipo de epidemias (só de malária, morrem quase 400 mil pessoas por ano no continente) façam a diferença. Mas é assustador. Na República Centro-Africana, há três ventiladores. Para cinco milhões de pessoas.
* UMA OBJECÇÃO
Não, os americanos não escolheram o sociopata fanfarrão que atrasou a resposta à covid-19 e transformou o país mais poderoso da História no mais vulnerável bebé perante o primeiro desafio não mercantil. Tal como não tinha escolhido o que invadiu o Afeganistão e o Iraque a pretexto de armas de destruição maciça que afinal não existiam. Quem os escolheu foi o Colégio Eleitoral e, sobretudo, o absurdo sistema winner-takes-all que gera a nomeação dos delegados em 48 dos 50 estados. É arcaico, é perigoso e, se mais nada o conseguisse provar, provava-o o facto de Nova Iorque já na semana passada ter começado a enterrar mortos em valas comuns. Que ao menos as comunidades luso-americanos não voltem a pactuar com este fantoche mediático, esta abjecção – eis tudo quanto, humildemente, consigo pedir.
* PARA VER, OUVIR, LER
O livro The Better Half, de Sharon Moalem – e ainda não traduzido em Portugal –, parece ultrapassar a mera conjuntura de uma pandemia, chegando a (tentar) explicar porque vivem as mulheres mais do que os homens. Estou à espera do meu exemplar, mas uma entrevista ao autor, que ouvi na BBC, já traz informação que chegue pelo menos para nos abrir o apetite. Aparentemente, as mulheres herdaram dois cromossomas, em vez de um; possuem mais cerca de mil genes do que os homens; e não só acumulam estrogénio como, visto terem de suportar menos massa muscular, produzem menos testosterona, uma hormona que exerce especial tensão sobre o sistema imunitário. É uma possível explicação para o facto de, ao redor do mundo, estarem a sobreviver tão melhor à covid-19 do que os homens. Evidentemente, um cínico poderia dizer que o homem criou um mundo machista para sobreviver. Mas talvez apenas estejamos ainda na idade da massa muscular… Entrevista aqui: https://www.bbc.co.uk/programmes/m000h2c0.
* FEIOS, PORCOS E MAUS
* UM POEMA QUE VOS LEIO
https://www.facebook.com/neto.joel/videos/253497892488868
«Árvores
O que tentam dizer as árvores
No seu silêncio lento e nos seus vagos rumores,
o sentido que têm no lugar onde estão,
a reverência, a ressonância, a transparência,
e os acentos claros e sombrios de uma frase aérea.
E as sombras e as folhas são a inocência de uma ideia
que entre a água e o espaço se tornou uma leve
integridade.
Sob o mágico sopro da luz são barcos transparentes.
Não sei se é o ar se é o sangue que brota dos seus
ramos.
Ouço a espuma finíssima das suas gargantas verdes.
Não estou, nunca estarei longe desta água pura
e destas lâmpadas antigas de obscuras ilhas.
Que pura serenidade da memória, que horizontes
em torno do poço silencioso! É um canto num sono
e o vento e a luz são o hálito de uma criança
que sobre um ramo de árvore abraça o mundo.»
António Ramos Rosa, Animal Olhar (ed. Escrituras, 2005)
* UM TEXTO QUE PUBLIQUEI
«Aviões, não, por favor
A luta contra a pandemia, para já a correr bem, numa região que é um barril de pólvora. Porque estará Lisboa a dificultar o caminho aos Açores, um arquipélago gregário, com baixos índices de desenvolvimento e três hospitais para nove ilhas?
Da última vez que a Humanidade se pôs perante desafio comparável, o Mal foi combatido por homens como Churchill, Roosevelt ou De Gaulle. No ano em que o planeta é varrido pela covid-19, alguns dos países mais influentes são comandados por personagens como Trump, Bolsonaro, Johnson, Modi, Obrador, até (a meias) Iglesias. Os resultados estão à vista e reforçam as razões por que devemos celebrar Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa.
Nem Belém nem São Bento têm feito tudo bem. Mas souberam integrar os sobressaltos e fracassos dos outros; souberam mobilizar a população para o combate à pandemia; e têm sabido manter, ao mesmo tempo, a tensão necessária à eficácia dos cuidados e a atenção imperativa às novas soluções de mitigação.
Apesar disso, continuam a submeter as regiões autónomas a uma pressão desnecessária, e a cujos perigos só os esforços hercúleos dos governos regionais – e alguma sorte – têm conseguido obviar.
Nos Açores, onde vivo, o fim-de-semana foi de alívio: sábado não houve novos casos, domingo apenas um, segunda-feira nenhum de novo. Mas noutros dias têm sido comunicados cinco, nove, mesmo quinze infecções. O número de internados em cuidados intensivos cresceu depressa. Domingo estavam identificadas sete cadeias de transmissão. E todos os seis concelhos de São Miguel encontravam-se já dentro de cordões sanitários.
Porque, num território assim, a tragédia pode escalar num ápice, ademais perante um cenário global em que a doença persiste em dramática expansão. E, enquanto continuarem a aterrar aqui aviões com passageiros não essenciais, o risco de disseminação em massa mantém-se. Mesmo que não se repitam casos como os do passageiro que, no domingo, desembarcou em Ponta Delgada doente, diagnosticado com covid-19 e evadido da hospitalização domiciliária no continente.
Para mais, o suave impacte dos primeiros dias da pandemia catalisou desleixos vários. Alguma classe média ainda pede mais voos, de modo a poder ir de férias (pergunto-me para onde), para exasperação expressa do Governo. E de São Miguel chegam cada vez mais relatos sobre como as pessoas furam os cordões – até escondidas em bagageiras de automóveis autorizados a circular.
Não por acaso. Muitas famílias, aqui, sobrevivem da economia informal. E, entretanto, o desenvolvimento humano continua abaixo da média. Regularmente ou em permanência, os Açores têm liderado as estatísticas nacionais de analfabetismo, insucesso e abandono escolar; de violência doméstica, abuso sexual e gravidez precoce; de alcoolismo, obesidade na adolescência e diabetes; de mortalidade infantil, suicídio jovem e crimes contra as pessoas; de desemprego, dependência do RSI e pobreza persistente.
É ir ao INE ou à Pordata. Os Açores são um paraíso para a classe média. Um rico vive tão bem cá como noutro lugar qualquer. Mas os desafios que aqui se colocam aos pobres não têm paralelo no país.
Por isso tenho sido um opositor da ideia, reclamada amiúde, de reforço da autonomia. Cheguei não só a defender o cargo do Representante da República, mas a pedir o regresso à extinta figura do Ministro da República, com margem para impor a Lisboa o escrutínio das ilhas, tarefa de que – por falta de massa crítica, por subsidiodependência, por desinteresse na coisa pública – não estamos a dar conta.
Pois qual não é o meu espanto quando, da primeira vez em muito tempo que Belém atribui aos seus Representantes uma tarefa relevante, é o da manutenção das carreiras aéreas entre o continente e os arquipélagos, apesar da covid-19 e em nome do princípio constitucional da continuidade territorial. Isto quando o Representante nos Açores há anos assiste impávido à negligenciação do não menos constitucional imperativo da coesão.
Como sempre, nem os constitucionalistas se entendem quanto ao que está em causa. A mim, custa-me perceber pelo menos que, ficando assegurados voos para cargas, passageiros com razões de força maior e operações de emergência, a continuidade territorial esteja mais em causa sem as carreiras regulares para as ilhas do que com cordões sanitários em Ovar ou em São Miguel. Mas, sobretudo, pasmo com a impotência em que Lisboa deixou o executivo regional.
No meio de constrangimentos formais e políticos (as diferentes tutelas aeroportuárias, a coincidência com o partido no poder no continente), Vasco Cordeiro evitou a severidade da Madeira impondo a paralisação da SATA e uma quarentena em hotel aos recém-chegados pela TAP. Mas, quanto a esta, não pode fazer senão rezar.
Foi o que esteve a fazer nos últimos dias: a rezar. A torcer para que os três voos semanais que a TAP pode agora levar às ilhas tornassem a ser, por iniciativa da companhia, reduzidos a dois. E para que (por iniciativa dela também) continuassem ambos agendados para dias de fim-de-semana, caso em que, na Páscoa, seriam anulados pelas restrições nacionais.
Portanto: autoridades políticas e de saúde torcendo, rezando para que uma companhia aérea, na sua discricionariedade, lhes poupe a população. Seria cómico se não fosse trágico.
Em terceiro lugar, porque as cadeias de transmissão identificadas resultaram todas de perambulações turísticas. Em segundo, porque o encerramento de aeroportos já provou ser eficaz na contenção do vírus, como aconteceu em São Jorge (cujo aeródromo é gerido pela Sata). E em primeiro, porque, em ilhas como estas, um caso nunca é um caso.
Gregária, uma grossa fatia da população dos Açores vive em bairros sociais atravancados e nem sempre com as melhores condições de salubridade. Entretanto, há três hospitais para nove ilhas. As evacuações fazem-se com helicópteros, em número limitado. A meteorologia complexa chega a dificultar resgates. E, no geral, bastos procedimentos clínicos persistem, para os locais, em ter de ser feitos em Lisboa, Porto ou Coimbra.
Um bom cenário para uma catástrofe.
E não será surpreendente que os números dos últimos dias aumentem o risco dela, por via de um triunfalismo de que já antes vimos sinais. Nem, já agora, que os missionários da açorianite aguda – três nostálgicos da FLA e meia dúzia de pensadores a quem dá jeito um mercadinho privativo – façam recrudescer a velha exigência de partidos regionais em Portugal, à procura de anónimos entediados e urgentes de pertencer a alguma equipa.
O populismo espreita em todo o lado. Há dias, falava-se de cantar o hino dos Açores à janela. Felizmente, ninguém sabia a letra: os açorianos são em primeiro lugar portugueses. Mas, entretanto, já há quem distribua, nas redes sociais, fichas de inscrição em movimentos nacionalistas açoreanos (sic) inspirados nos dos anos 70.»
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