Versão radiofónica: aqui
Exceptuando as noites de copos, em que lá vamos buscar papo-secos quentes para apaziguar o estômago e a alma, é nos sábados de Inverno que mais vezes aportamos àquela pastelaria. Passamos a manhã por Angra, a Catarina à procura de pechinchas nas boutiques, eu a recolher arames e parafusos pelas lojas de ferragens, e então começa o melhor da nossa semana.
Primeiro almoçamos no restaurante do costume – chicharros fritos para mim, lulas grelhadas para ela –, e onde bebemos sempre um pouco de mais. Ao fim do dia voltaremos para casa, abriremos a chaise-longue ao sofá e esparramarmo-nos-emos com os cães em frente à lareira, a ler ou ver filmes tontos, até que o sono nos tome de assalto.
Pelo meio, paramos na pastelaria a comer um gelado de fruta.
Este sábado não era a rapariga gordinha a atender, o que me contrariou um pouco. Gosto dos meus sábados iguais, todos iguais, como num eterno retorno. Quando já vínhamos a sair, ela apareceu. Mas, em vez de vir lá de trás, da cozinha, vinha da porta da rua, como uma cliente – e, ao chegar ao balcão, pôs um ar de empáfia e recitou:
– É um café cheio, se faz favor.
Não foi o que disse, mas como o disse:
– É um café cheio, se faz favor.
Pediu-o cantando. E, como o colega não lhe deu logo resposta, amarrado a um sorrisinho com tanto de timidez como de cumplicidade, abriu as mãos:
– O que é? Não posso ser chique? Hoje sou cliente e quero um café cheio, se faz favor.
E eu fiquei ali a pensar em tanta coisa que quase não tive mão nelas. Por exemplo, nos cafés de Lisboa, em cujas esplanadas nos espalhávamos todos, aos sete e aos oito, e depois não havia um só que pedisse um café comum, desfilando cheios e italianas, pingados e chávenas-escaldadas até se tornar impossível ao empregado registá-los de cabeça. E fiquei a pensar, sobretudo, naquilo que pode fazer uma pessoa sentir-se chique.
Porque aquela rapariga estava a brincar, mas ao menos tempo não estava. Quando é ela quem se encontra do lado de dentro balcão e alguém lhe pede um café cheio, efectivamente diz a si mesma:
– Ora, aqui está uma pessoa chique!
Ou então:
– Olha-me esta armada em chique…
Ou mesmo:
– Pronto, está certo que não é chique, mas hoje é cliente e, se quiser ser chique, tem todo o direito.
É claro que aqui, nesta ilha onde vivo, tudo é mais cabal: o lugar é mais antigo e a palavra snob, como já escrevi, nunca é crítica – é elogio. Mas já o ouvi em Lisboa também. A propósito de uma écharpe e de um isqueiro a gasolina: “Que chique, um isqueiro a gasolina…” A propósito de um cão com uma camisolinha e até de uma pessoa que se despede de um amigo com um abraço verbalizado: “Ai, que chique, ‘Um abraço’.”
Se sai da norma, há uma boa possibilidade de ser chique. E, do outro lado, até pode haver inveja, coisa tão portuguesa como açoriana. Mas também há uma admiração. E, principalmente, vem ao de cima um filtro que transforma todas as coisas em sinais de estatuto económico e social, o que só vem dar razão aos materialistas dialécticos.
Não vou por aí: não são a minha luta, os motores da história – pelo menos hoje. Mas pergunto-me quanta dor não houve naquele que pede um café cheio e se reclama chique no momento em que teve, ele próprio, de servir um café cheio a alguém. O que se sentiu? Onde se sentiu – a caminho do que se sentiu?
Porque está sempre lá, realmente, esse conflito. Em alguns casos, produziu revoluções. Em muitos, arte. Mas na maior parte, não produziu nada: acompanhou o seu paciente, foi com ele para o caixão e parasitou-o para a eternidade, a ele e à sua memória: a dor de não ser chique, de ser menos do que o outro, de não poder nunca aspirar ao que o outro é – de achar que não o pode.
A dor que dura a vida inteira, que se repete a vida inteira, e que afinal não se transforma em nada – a dor da insignificância. Também isso está em jogo nesta triste vaga de agressões a médicos, paradoxalmente eles próprios cada vez mais insignificantes.