Versão radiofónica: aqui
Primeiro, não a ouço. Sigo a pé rumo ao ginásio, com um ar de marmanjo serôdio – calções curtos, mochila às costas, lenço na cabeça para me proteger das constipações –, e ademais levo nos ouvidos um daqueles auscultadores bluetooth de onde ecoa, com o volume no máximo:
Those who died are justified
For wearing the badge,
they’re the chosen whites
Sou tudo menos o protótipo do homem com que uma senhora de bem meteria conversa. Mas ela insiste:
– O senhor veja!
E aponta-me o cartão Multibanco, igual a um que já tive, com um papelinho onde se inscrevem, cuidadosamente desenhados, quatro algarismos.
Chateia-me o imperativo, “Veja!”, porque venho imbuído do espírito dos Rage Against The Machine, e demoro a desligar os auscultadores, incerto sobre se chegarei ao meu destino com raiva suficiente para levantar aqueles pesos todos.
Depois detenho-me nela.
– O senhor veja se tem dinheiro! – repete, cartão e papelinho erguidos no ar. – O meu marido é que sabe trabalhar com isso…
Tem umas botas correctas, as calças debruando-se-lhes sobre os canos numa quase elegância, e o casaco de ganga que traz cingido ao corpo, justo e fechado até acima, fica-lhe bem. É uma senhora bonita, cinquenta e poucos anos, com uma cabeleira loira bem pintada que as mãos grosseiras não chegam a trair por completo.
Agarro-lhe no cartão, introduzo-o na ranhura da máquina, digito os algarismos do papelinho e o ecrã denuncia código errado.
Ergo as sobrancelhas:
– Acho que me enganei. – Reintroduzo o cartão. – É uma consulta de movimentos?
E a senhora:
– É pra ver se tem dinheiro pra levantar – E aponta-me o papelinho. – É um 6, depois um 4, um 3 e um 7.
Repito a operação, mas a caixa torna a recusar-se.
– Podemos tentar outra vez – suspiro –, mas se der errado a máquina engole o cartão.
E ela:
– O senhor deixe estar, que eu vou a casa buscar outro código.
E eu fico ali, a vê-la caminhar no sentido da Canada de Belém, do Bairro Social: as botas descendo e subindo entre o passeio e o alcatrão, um pouco arrastadas – os braços apertados à volta do corpo, com o Multibanco e o papelinho em riste ainda.
Dali a pouco, retomada a marcha, vogarão à minha volta as motinhas ensurdecedoras, com os seus fumos excessivos, e, sobre cada uma delas haverá dois tipos muito apertados, o de trás abanando descompassadamente as pernas para testar a destreza do da frente. Os carros tornar-se-ão menos esparsos e silenciosos, correndo como os que não precisariam de rap metal aos gritos para aguentar duas horas a levantar halteres – e, sempre que um obstáculo me faça desviar-me da berma, um deles conduzirá ostensivamente na minha direcção, até me empurrar de novo contra o muro.
Os auscultadores, esses, mantêm-se desligados. Penso naquela senhora pouco menos que bem-posta – afinal iletrada, se não mesmo analfabeta. Penso nos brutos que voltam dos seus empregos zangados com o facto de terem de trabalhar: carentes de atenções – desejosos de me mostrarem a minha subalternidade por seguir a pé.
Ocorre-me o poema de Borges:
Estas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.
Mas estes não são os justos, não. Estes são outros abaixo, ignaros mesmo da ideia de justeza – outros a que a poesia até deu mais atenção, mas nem sempre nome.
Pergunto-me se alguma vez será deles que falamos quando falamos dos “portugueses”. E pergunto-me também quantos se manterão aquém – até muito aquém – do chamado ordenado mínimo, que todos os anos, por esta altura, nos pomos a discutir como se fosse o fundo da escala.
Quem nos dera que fosse. E que, aliás, o dinheiro fosse escala que chegue.