Versão radiofónica: aqui
Ontem voltámos à Serreta, a passear os cães. Estacionámos no Miradouro, descemos pela bagacina – e de repente ali estava ele, o cheiro, como um anúncio do novo ano. Entrava-me pelas narinas, num misto de agridoçura e frescor que era também uma visitação estival, e devolvia-me não só à circularidade do tempo, mas à própria infância.
Regressei carregado de gravetos, para perfumar o fogo da lareira, e enchi os bolsos de flores, que distribuí pela casa.
Toda a vida gostei de eucaliptos. Pontuavam a mata por aí acima, dois ou três aqui, um solitário acolá, e ainda hoje, quando volto da cidade, são a primeira coisa que vejo, adejando ao vento no topo daquilo que hoje é a minha pequena quinta. Amo-os como à própria memória, porque é essa a sua primeira natureza, e custa-me assistir à sua diabolização, hoje tão consensual.
Ainda estes dias voltámos a endurecer os insultos contra eles, realertados pelo Open da Austrália e, com este, para a triste realidade dos fogos.
O eucalipto não é apenas a árvore mais alta do mundo, é também a mais injustiçada. Das suas folhas como da sua casca, dos seus opérculos, pétalas, estames, válvulas e sementes: de tudo isso se podem fazer infusões, defumações e até banhos com que combater as constipações e as gripes, as tosses e as febres – as bronquites e as rinites e as sinusites e as amigdalites.
Infecções urinárias, problemas reumáticos, excessos de açúcar: todos eles o eucalipto pode mitigar, e não há ano em que não sejam encontradas novas utilizações para as propriedades balsâmicas e antissépticas daquela mirtácea milagrosa.
Ingratos, pegámos nos defeitos dela e elevámo-los à categoria de mitos. Insistimos no seu excesso de absorção de água, com nefastas consequências para a biodiversidade das florestas, e passamos por cima de que 80% dos minerais que ela absorve são devolvidos à terra. Entretanto, deixamos de lado a discussão sobre a seca, ainda há dias o supremo problema do século XXI, e esquecemo-nos de que pode bem acontecer que, no fim, não tenhamos outras árvores senão aquelas cuja eficiência na retenção da pouca água existente lhes permita sobreviver.
Um mundo sem árvores… Como seria um mundo sem árvores?
Naturalmente, há o problema dos fogos florestais, e não é menor. Todos os anos ardem florestas, em Portugal e no mundo, e os últimos têm sido devastadores. Mas o eucalipto também é vítima deles. E continuará a sê-lo mesmo depois de se provar que os seus óleos voláteis entram autocombustão, ateando incêndios também.
Aqui em casa, nunca aconteceu. São duas dúzias de eucaliptos, distribuídos ao acaso encosta acima. Passeei-me entre eles com os meus mortos, inspirando os seus odores, e sob suas sombras fugidias abri os olhos para o mar ao fundo.
Mas não são duzentos milhões, afogando a planície, e aí está a diferença.
O eucalipto não é o problema: o problema é o eucaliptal. O que não podemos é ter países cuja floresta, como a portuguesa, seja constituída em 25 por cento por eucaliptos. Até as florestas têm uma medida. Portanto, odiar o eucalipto por causa do eucaliptal é como odiar (sei lá) “o americano” ou “o árabe”, só porque “alguns” americanos se têm comportado como mentecaptos e “alguns” árabes como assassinos (e vice-versa) – odiar o eucalipto por causa do eucaliptal é como odiar, não “um” homem, mas “o” Homem: como se não pudesse já haver esperança.
Por causa do eucaliptal ainda temos livros no mundo. Mas admitamo-lo: o eucaliptal é mau.
O eucaliptal é mau, o eucalipto é bom. Também são assim as pessoas, às vezes: melhores sozinhas do que quando reunidas em turba.