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O meu galgo não entra em corridas: põe-nos a correr a nós. Esta manhã infiltrou-se-nos no quarto, foi à mesa de cabeceira da Catarina e extraiu de lá uma carteira de Trifene 400, ali deixada desde tínhamos apenas cães adultos. Quando nos apercebemos, já havia engolido dois ou três comprimidos. Demos-lhe água oxigenada, para o fazer vomitar, e apressámo-nos para o veterinário, que o algaliou e enviou a factura para a recepção.
Às vezes um vizinho pergunta: “Q’diacho que cão é esse?” Estranha-lhe o pescoço comprido, a cabeça pequenina e os olhos azuis, embora lhe pareça que já viu um bicho assim na TV. Digo-lhe que é um galgo, capaz de acelerar até aos 70 km/h em segundos, embora não saiba exactamente onde o li, ou sequer se é verdade. “Eh, huóme, podia ir para as corridas!”, exclama o vizinho – e eu respondo que sim, que há de facto corridas de galgos, com apostas e tudo.
O meu não participa. Comprámo-lo para cão de companhia, que é outra das suas aptidões, e hesitámos bastante, porque o habitual é recolhermos os animais da rua. Só que a Catarina tinha gostado muito do whippet do Luís Pedro, a que chamara “uma escultura viva”, e, quando eu soube de uma ninhada com um disponível, meti-me num avião e fui buscá-lo a Lisboa, excentricidade que nunca pensara cometer.
Íamos chamar-lhe Mr. Darcy, como o herói de Jane Austen, porque a ele não o esterilizaríamos e é uma verdade universalmente reconhecida que um varão solteiro e na posse de uma fortuna considerável deve andar à procura de companheira. Mas quando o pusemos no chão da cozinha, para o apresentar ao Melville e à Jasmim, pareceu-nos antes um cão numa pintura, e portanto chamámos-lhe Gauguin, porque ninguém pintou os cães como o velho Paul depois de descobrir a Polinésia.
Agora é o petiz cá de casa. Dá uns sprints no jardim, mas, quando o levamos a passear com os outros, ainda tem de se esforçar para se equivaler ao Melville. Entretanto, há dias o Melville fê-lo ganir, naquele seu jeito abrutalhado de brincar, e a Jasmim deu-lhe uma reprimenda tão grande que lhe deixou uma orelha em sangue, pelo que agora os dois machos, obedientes, brincam cada um para seu lado.
Portanto, mesmo as corridas domésticas estão suspensas. De maneira que o meu galgo não vai ser submetido a treinos em noras, nem perseguir peles de lebre, nem valer-me dinheiro em apostas. No máximo, sou capaz de lhe dar eu cinco euros para ele me deixar acabar esta crónica em sossego.
Deitados em redor dele junto à lareira, o Melville e a Jasmim parecem-me agora enormes e até molengões. Talvez estejam a entrar na curva descendente, o que me custará muito a encarar. Mas já não me esquecerei de que quando chegaram à minha vida deixei de ser capaz de assistir a uma tourada, ir a uma matança de porco ou sequer espezinhar um bicho-pau.
Mudaram-me.
Também por isso, não os quero a fazer truques – a nenhum deles –, a não ser sentarem-se para eu lhes limpar as patas quando vêm da rua ou ficarem quietos quando preciso de ir ao contentor pôr o lixo. E muito menos os quero a entrar em corridas parvas, evidentemente.
Somos uma família com cinco cabeças e dezasseis patas, em que os cães vivem dentro de casa, mas só o Gauguin se senta no sofá, porque chegou quando nós próprios estamos mais velhos e permissivos. Talvez pareçamos um pouco ridículos, todos nós, mas mesmo assim sê-lo-emos menos do que os senhores da chamada Federação Nacional de Galgueiros, como os que eu vi há dias na TVI, e de que se diz fazerem corridas de galgos dopados, sobre-explorados e, enfim, abandonados.
De resto, quando olho para trás e vejo que se passaram sete anos desde que chegámos a esta ilha, volto a lembrar-me de Peter Handke – o Nobel, esse mesmo – e do seu Poema à Duração:
A duração não existe na pedra
antiquíssima e eterna,
mas sim no transitório,
no que é branco e sensível.
Com ele percebi que o que me ligaria à minha ilha natal, entretanto já algo estranha, não seriam nem a terra nem o mar: seriam as flores. A duração está na própria impermanência – a duração é a impermanência –, e até a morte dos meus cães, se eu lhes sobreviver, fará parte delas: de uma como da outra.
Maravilhoso, querido Joel. Todos os teus leitores entenderão a mensagem desta crónica, no que toca “a duração e a impermanência”. Contudo, estas palavras saídas num jorro de imensa criatividade, entrelaçadas no quotidiano da Jasmim, do Melville e da nova aquisição, serão apreciadas consoante as vivências de quem as leu/lê/lerá. No entanto, quer-me parecer que quem coabita com os bichinhos de quatro patas* encontrará aqui algum reflexo da relação que mantém com os ditos. Eles mudam-nos, sim, e tornam-nos capazes de fazer o que anteriormente seria considerado impensável e, talvez, ridículo. Eles tornam-nos mais sensíveis, tolerantes, pacientes, indulgentes e contribuem para que perscrutemos o mundo de uma forma mais intransigente, concretamente no que diz respeito ao sofrimento infligido aos animais. Fui incapaz de ver a reportagem sobre os galgos, galguei a sete pés…e fui ler.
Apreciei, sobremaneira, o humor que perpassa quase toda a crónica, face a um tema tão decoroso e pertinente.
Termino com o envio de uma patadinha ternurenta da Tuska…
Muito obrigado, querida Isabel. Um abraço dos grandes para todos, adorável Tuska incluída!