Versão radiofónica: aqui
Ontem à tarde fui conferir os resultados de uma angariação de fundos para que contribuí – um fundo cívico de ajuda às vítimas materiais do Furação Lorenzo. Já tinham sido angariados mais de quinze mil euros, o que me pareceu bom sinal sobre a solidariedade entre os portugueses.
O temporal deixou pelos Açores um lamentável rasto de destruição. Várias famílias desalojadas, infra-estruturas destruídas em ilhas com problemas crónicos de abastecimento – vai ser preciso dinheiro.
Mas a escala conta. O furacão que passou no arquipélago não foi o furacão que vimos na comunicação social. O furacão que se verificou no terreno não foi o que o alarido da Internet retratou. O furacão que nos visitou não foi aquele a que os políticos se sentaram a assistir, de câmara apontada à sua própria consternação, em plena campanha eleitoral.
Houve destruição, mas não muito mais do que, ano sim ano não, acontece nas ilhas. Não morreu ninguém. E o resto, como sempre com o povo dos Açores, será reconstruído.
A História ajudava a prevê-lo. Nenhuma das grandes catástrofes açorianas chegou com aviso. Terramotos, derrocadas, naufrágios: nada disso se deixou antecipar. E, além do mais, a regra é os furacões chegarem às ilhas de Antero e Nemésio com menos força do que o previsto.
Mesmo assim, a comunicação social andou dias numa vertigem. Insistiu em termos como “alerta vermelho”, “pânico nos Açores”, “risco máximo”. Acelerou os rodapés, deu-lhes cor e intermitências. E, quando sentiu que o resultado podia afinal saber a pouco, agarrou nas imagens mais dramáticas e repetiu-as ad nauseum.
Alguns açorianos gostaram das atenções. Até em São Miguel, onde o furacão não chegou, pessoas correram para o Facebook a marcarem-se como “seguras” – mesmo depois de se saber não ter havido vítimas.
As restantes lembraram-se de que tanto os seus antepassados como elas próprias já tinham vencido pior. Portanto, pediram ajuda. Criaram fundos – e arregaçaram as mangas.
O país, esse, já andava no encalço da comoção seguinte, guiado pelos arautos do showrnalismo. A informação do século XXI precisa de emoções, e melhor ainda se a principal delas for o medo – quem nos dera um caso assim por semana.
Mas, por agora, bastava de furacões e bastava de Açores. Saberiam a notícia requentada, um como outro.
O balanço, de qualquer modo, era positivo. O Lorenzo permitira demonstrar responsabilidade social; permitira manter o espectador agarrado à TV; permitira testar um ou outro método mais americano de fazer – e ainda fora ao encontro do ar do tempo.
Melhor, só racharem três icebergues no Árctico. Se calhar nem isso – em frente, pois.
Eu é que, infelizmente, já passei a idade de andar para a frente sem perceber o que ficou para trás. E deixo-me aqui a pensar no que, apesar de tudo, possa ter havido de lúdico nisto – como não deixa de ser lúdico um filme sobre uma doença rara, a defesa da civilização ou uma emergência ambiental.
Aquilo a que chamamos “crise dos media” tem três rostos: um são as mudanças nas fontes e nos modelos de financiamento, face à tecnologia e ao divórcio entre o público e tudo o que não seja informação lúdica e hedonista; outro é um crescimento exponencial dos meios descomprometidos com as proporções, e portanto disponíveis para explorar as dimensões lúdica e hedonista da informação; e o terceiro é um esforço dos meios de referência para encontrarem um modo de incluírem, eles próprios, as dimensões lúdica e hedonista da informação nos seus alinhamentos.
O hedonismo e a recreação estão sempre lá. Como desta vez – nada de novo.
O problema é que foi este mesmo misto de jornalismo irracional, política oportunista e comoção cibernética a deixar crescer a extrema-direita, na Europa como agora também em Portugal. E, no caso do furacão dos Açores, já não podemos de facto acusar de jornalismo-espectáculo apenas o meio do costume: foram quase todos.